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O cânone da libertinagem: uma homenagem ao dia 02 de junho, dia internacional das prostitutas

Em 02 de junho de 1975, uma centena de prostitutas ocuparam a Igreja de Saint-Nizier, em Lyon, na França, com o objetivo de chamar a atenção para a precariedade de sua situação de trabalho.
Por: PORTAL JG
Data de publicação: 07/06/2020 08h56

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Claudinei Pereira é Mestre em Filosofia Ética e Política pela Universidade Federal do Piauí-UFPI e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito-UFES

*Por Claudinei Pereira

Qual a natureza da prostituição? Qual o seu significado para além do moralismo? Qual sua significação simbólica? Eis a nossa provocação aos leitores! 

Imagem Ilustrativa

Em 02 de junho comemora-se o dia internacional das prostitutas. Para quem não conhecia essa festividade, ela advém do fato memorável como um marco que teve início no dia 02 de junho de 1975, ocasião em que mais de uma centena de prostitutas ocuparam a Igreja de Saint-Nizier, em Lyon, na França, com o objetivo de chamar a atenção para a precariedade de sua situação de trabalho. 

Desde a presente data, esse dia é lembrado internacionalmente. [...] No mais, como descreve Francisco Oliveira em Prostituição: glamour e ocaso, “A ocupação da Igreja, em Lyon, deu-se após a ocorrência de dois assassinatos de prostitutas, por absoluta ausência do Poder Público, como se as profissionais do sexo fossem pessoas de segunda categoria que vivem à latere da sociedade e não pagassem os seus impostos como qualquer cidadão francês. O dia 2 de junho é considerado o dia da revolta das putas contra a displicência do Estado”.

Porém, sabemos que existem várias questões que envolvem o “problema da prostituição”, por exemplo: tráfico de menores, exploração sexual, extorsões, drogas, entre outros pontos que envolvem dialeticamente a prática do meretrício. Todavia, nosso objetivo não se refere a essa ordem, mas fazer uma provocação do valor, significado do conceito da prostituição. Nesse sentido, esta data nos coloca diante de um confronto entre a repressão e a liberdade, mas também nos abre para o dilema entre os “falsos amores” e os “verdadeiros amores”. Aliás, os “falsos amores são os mais verdadeiros”, pois eles não precisam ser autênticos ou reais, mas simplesmente ser. Eles não exigem tudo do amor, por isso o jogo da sedução é o jogo de suas próprias verdades. Não precisam viver de esperanças de projetos ou de sonhos. A ilusão é a sua verdade. Nesse jogo, existe um hiato entre o ser e o não ser, entre o verdadeiro e o falso, ou seja, a temeridade. Pois isso, como bem citara Pascal Bruckner em O paradoxo amoroso: ensaio sobre as metamorfoses da experiência amorosa ao fazer referência a Fénelon em As aventuras de Telêmaco, “O amor é em si mais temível do que todos os naufrágios”. 

Além disso, como fora bem explanado no texto anterior “DO DESEJO VELADO AO DESVELAR DA NUDEZ: fantasias e a virtualidade dos desejos em tempos de pandemia”, a prostituta sempre esteve como alvo de repudia, de desconfiança por uma boa parte da sociedade, por instituições religiosas, não só das sociedades antigas, mas também na contemporânea. Todavia, quero lhes deixar vigilantes: a prostituta pode ser considerada alguém que está para além de um “trabalho sujo” para alguns, que vive dos desarmes da vida conjugal, mas é, antes de tudo, alguém que nos revela e desmonta nossas fantasias mais ocultas, nossos desejos mais sombrios. Ou seja, ela nos remete ao encontro descompromissado, ao imperativo da não moralidade, do não ressentimento. 

Na Zona da Luz Vermelha se sobressai a variedade, o despertar dos desejos, “que incentiva a libido e oferece horas ou noite de prazer intenso, sem preconceitos e sem frescura; a oportunidade em que o homem poderá dar a si o presente da realização de todas suas fantasias, sem remorsos”, afirma Francisco Oliveira. 

Elas, consideradas “putas”, "libertinas", “vacas”, “piranhas”, “galinhas”, “cadelas”, “mulheres públicas”, “loureiras”, “decaídas”, “fadistas”, “mulheres de má fama”, “mulheres de ponta de rua”, “perdidas”, “mulheres erradas”, “vadias”, “quengas”, “raparigas”, entre outros adjetivos, nos colocam diante do paradoxo enigmático do prazer, ou seja, por que uma mulher considerada libertina tem a capacidade singular de nos seduzir além das ‘donas de casa’, àquelas que se dedicam diariamente e amorosamente de modo quase sublime? Por que essas mulheres nos seduzem para além dos amores considerados ‘para sempre e abençoado por Deus’? Ou mais drasticamente ‘até que a morte nos separe’? Hoc est mysterium fidei [Eis o mistério da fé]. 

Em Prostitutas, bruxas e donas de casa: notícias do Éden e do calvário feminino, o autor Ezio Bazzo parece dar uma possível resposta, “os homens, para não dizer seres, buscam nas surubas, nos bordéis e até mesmo na cópula mais reacionária, o mesmo que os crentes buscam na cruz, nos evangelhos, nos cultos aos demônios”.  

Além disso, o autor nos coloca diante da pertinente questão: “o que é ser puta? Será que ser prostituta é só dar o rabo a estanhos? É só foder com cinco, dez ou mais numa noite? Isso é ser puta?”.

Sua resposta é pontual e instigante: “A beleza é o fascínio dos bordéis, dos becos e das ruas onde prostitutas correm livres e soltas, devem-se basicamente ao fato de que ali o mundo é outro, uma espécie de inferno, paraíso e purgatório ao mesmo tempo, com diabos, anjos canalhas de todas as naturezas. A vida flui por todos os buracos de uma zona de meretrício. As vozes parecem verdadeiras. Os sinos do prazer mais aceitável. Tudo é transformado em um hino à vida e ao vício. A cada esquina uma fogueira onde os clientes podem experimentar as torturas do inferno e as delícias do Éden. E cada subsolo uma alcova celeste, onde deuses brindam e cantarolam poemas de luxúria e devassidão. O purgatório está em cada olhar, em cada aperto de coxas, em cada órgão que ejacula suas descendências... Ali, os homens parecem mais homens, porque as putas jogam em todas as frentes e não lhes exigem absolutamente nada. Nenhum papel, nenhum limite, nenhuma bravata sexual. Quando brochas, elas os consolam. Quando tarados, sufocam sua compulsão. [...] Compreendem as origens e as desordens do mundo com lucidez e paciência. São sempre mais de alguém”.

Ademais, “geraram, geram, levam em si a Arca Geradora, e isto as faz transcender, entender tudo, ter piedade de seus hóspedes, de seus clientes, de seus amantes e de si mesmas. Sem nunca terem lido uma única linha, são tudo o que a mitologia colocou sobre os seios de Lilith, das Nereidas, de Medusa, de Jezabel, de Malinche e de todas as santas, bruxas, mães, avós e outros símbolos femininos. Não são apenas a lua-negra, são a lua-prateada, o sol incandescente, as trevas dos abismos, todas as esperanças de amor, de gozo, de vício, de sacanagem... A única via para a dessacralização de um corpo traído e subjugado. Cada uma dessas mulheres é um discurso antirreligioso, contra a própria instituição que, no passado, edificou a Prostituição Sagrada. Sim, a prostituta já foi a ponte de comunicação entre os homens e Deus... Nenhuma imagem literária e libertária é mais encantadora do que esta: Deus só poderá ser buscado através das putas! Putanear é voar para o céus e para os braços de Deus! Deus, ele próprio é a prostituição! O Vício! A luz que emitem os corpos que gozam!”, nos ilustra magistralmente Ezio Bazzo. 

Diante disso, como conclusão pode se dizer que o sexo sempre moverá o mundo. Talvez como disserta o livro de Gênesis, que afirma “Deus criou o homem e a mulher e os ordenara”: “sede fecundos, multiplica-vos”, ao descrever talvez a primeira narrativa poética da história: “Esta, sim é osso de meus ossos, e carne de minha carne! [...] Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne”, poderia ser reescrita: “Essas são ossos de meus ossos, e carne da minha carne”. Ou seja, o pronome demonstrativo (essas) em harmonia com o adjetivo no plural (ossos de meus ossos) nos coloca ao mundo de invariáveis possibilidades, de variáveis amores. Esse mundo imaginário não se minimiza somente ao universo masculino, mas também do feminino. A proatividade hormonal, a “natureza humana (macho-fêmea) é preenchida de situações inusitadas”. Portanto, o dia 2 de junho é mais do que uma data simbólica e comemorativa, mas nos coloca também diante de paradoxos internos que ainda nos são obscuros. 

Em homenagem à libertina, à prostituta, pelo seu direito de reconhecimento, quero vos deixar uma última provocação, uma provocação libertina aos leitores. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça: “Elas, inimigas dos reinados, porque podiam conspurcar [profanar] seus ministros”; inimigas das forças armadas e dos exércitos, porque podiam corromper seus soldados, inimigas das famílias. Elas, as putas, prostitutas, libertinas, clandestinas, as meretrizes... Elas, em seus ambientes fixados em luzes de néon, lá, na “zona do meretrício” em que a mórbida do matrimônio não existe, a lei e a moralidade divina não faz o menor sentido... Lá, no lugar do paradoxo onde se mistura o prazer e a dor da consciência, os moralistas, os religiosos, os aristocráticos, burocráticos, reacionários, tradicionalistas, comunistas, liberais... No final do seu entediante trabalho escroto, tornam-se os “ratos” que passeiam pelos esgotos mais baratos e luxuosos da noite. “Aqui, é o lugar onde se revela a fragilidade pela obsessão do poder político; onde os moralistas canônicos da religião e as promessas ilusórias de amores eternos, não passam de retóricas e utopias. Este é o lugar em que os burocratas são rendidos e desnudados. Aqui, talvez seja o local Sacrosanctum [sacrossanto] de todos os lugares, pois aqui somos desmascarados. Aqui, talvez possa ser no novo céu e a nova terra prometida pelo Messias. Aqui, todos nós somos rendidos, pois se cumpre a profecia do evangelho de Mateus: ‘Em verdade vos digo: as prostitutas vos precederão no Reino de Deus’”. (Uma adaptação da obra: Prostitutas, bruxas e donas de casa: notícias do Éden e do Calvário Feminino, de Ezio Flavio Bazzo). 

Se esse amor

Ficar entre nós dois

Vai ser tão pobre amor

Vai se gastar

Se eu te amo e tu me amas

Um amor a dois profana

O amor de todos os mortais

Porque quem gosta de maçã

Irá gostar de todas

Porque todas são iguais

Se eu te amo e tu me amas

E outro vem quando tu chamas

Como poderei te condenar?

Infinita tua beleza

Como podes ficar presa

Que nem santa num altar?

Quando eu te escolhi

Para morar junto de mim

Eu quis ser tua alma

Ter seu corpo, tudo enfim

Mas compreendi

Que além de dois existem mais

Amor só dura em liberdade

O ciúme é só vaidade

Sofro, mas eu vou te libertar

O que é que eu quero

Se eu te privo

Do que eu mais venero?

Que é a beleza de deitar

Quando eu te escolhi

Para morar junto de mim

Eu quis ser tua alma

Ter seu corpo, tudo enfim

Mas compreendi

Que além de dois existem mais

Amor só dura em liberdade

O ciúme é só vaidade

Sofro, mas eu vou te libertar

O que é que eu quero

Se eu te privo

Do que eu mais venero?

Que é a beleza de deitar

(A Maça – Raul Seixas) 

*Claudinei Pereira - Mestre em Filosofia Ética e Política pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Instagram: clausobreski





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