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Provocações filosóficas: olhares diversos

Por: Claudinei Pereira
Mestre em Filosofia Ética e Política pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


A Carência Criadora


Data: 30/05/2021 10:09
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Para escrever na minha coluna dominical, convidei o ludovicence, Roberto Carvalho, graduado em filosofia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), com estudos em Nietzsche. Fez seu mestrado na Universidade Federal do Piauí (UFPI), ainda com pesquisa em Nietzsche. Atualmente é professor substituto na Universidade Federal do Maranhão. Além disso, é um dos coordenadores do Grupo de Estudos On-line Filosofia & Literatura. Dentre outras coisas, se interessa pelo estudo do contemporâneo, seja compreendido como pós-modernidade, modernidade tardia ou hipermodernidade.

Roberto Carvalho, graduado em filosofia pela Universidade Federal do Maranhão

A Carência sempre fez parte do cotidiano. A sensação de que algo falta sempre encontrou o seu lugar nos corações humanos, para não falar das vezes em que ela os abitou sozinha. Nas biografias não escritas de grandes figuras históricas, sábios, artistas, estadistas, dissipadas as glórias que nos levam a seus nomes, sobra senão a Carência a acompanhá-los em suspiros inquietos. Que grande personagem histórico baixou a guarda de seu orgulho para falar senão de suas carências? Se houve algum, dificilmente foi sincero e profundo. É que a Carência, antes mesmo da morte, coloca todos no mesmo plano. Carentes ao infinito, plebeus e patrícios compartilham o vinho e se consolam, cada um ante o reflexo de sua condição insuficiente. Era uma vez uma carência que se confessou com vaidade e distinção. Falsa carência, nada mais que usurpadora.

Carências ordinárias facilmente identificam o que lhes falta. Contudo, carências profundas de início são desconhecidas. Talvez o princípio de autoconservação impeça a razão de lançar luz sobre nossas carências mais profundas. Como não somos bons guardadores de segredos, é salutar que elas sejam escondidas até de nós mesmos. Se nossas carências superficiais, quando expostas, já nos deixam vulneráveis, que esperar das profundas?! Se as conhecêssemos com distinção, facilmente cairíamos no erro de contá-las a falsos amigos, que estariam em posição privilegiada para nos prejudicar. Ao que parece, nossa alma foi feita também para nos proteger de nós mesmos. Ela não nos confia os seus segredos.    

Mas somos seres curiosos e profundos. Não desistimos de saber o que nos falta e fazemos com que a alma desembuche a insatisfação que tanto esconde. Insistimos e persistimos, mas ela nunca cede às nossas chantagens emocionais. E, no entanto, de uma forma involuntária, meio que por acaso, quando estávamos por desistir de nos compreendermos, a Carência das carências acaba por nos confessar o seu desejo: uma razão para amar.

Então é o amor a finalidade da Carência? Mas onde está esse amor? Onde encontrá-lo? Agora que a Carência descobriu o que lhe faltava, toma consciência de si e se expande ad infinitum, até encontrar algum corpo que a contenha e a satisfaça como limite. O limite pode ser um corpo, um toque, uma voz, um sorrido, uma palavra, um olhar, enfim, um jeito de ser singular e incomparável. Esse limite, então, é seu amor? Digamos que é e não é. Em si mesmo, ele só é um evento que lhe apareceu por acaso, um encontro feliz, nada mais que isso. Para a Carência, no entanto, nada é por acaso; ela acredita no destino e na mística de ser justamente esse o limite, e não outro, a cessar seu movimento ao infinito. Não podendo mais suportar-se, ela cessa em um limite e o transforma em sua mais elevada necessidade. O limite mesmo não era seu amor antes de conhecê-la, mas passou a ser desde que ela o alcançou. A Carência, para conter seu movimento ad infinitum, acabou por criar seu amor. A Carência é artista, e o amor, meus queridos, precisa ser criado, e cabe ao limite aceitar ou não ser a sua matéria prima. 

A alma é seduzida por essa criação. Se antes não sabia o que lhe faltava, agora é possuída pela convicção. Não só sabe que lhe falta amar como também descobriu a quem amar. É maravilhoso quando o limite, com todas as suas singularidades, empresta sua imagem para ser a matéria prima desse amor. Aí está a felicidade da concordância entre amante e amado. Quando há a feliz coincidência de um ser o limite do outro, melhor ainda, pois ambos são amantes e amados ao mesmo tempo. No entanto, quando o limite não se identifica com o amor que lhe criaram, é realmente uma situação muito triste. É difícil para a Carência aceitar que alguém não queira tornar-se em sua mais bela criação. Em tais situações, as almas frustradas podem reagir de múltiplas maneiras. Algumas ficam melancólicas, outras amarguradas, outras raivosas, outras se entregam às paixões efêmeras e aos prazeres mundanos. Como se não bastante, tudo se aprofunda quando o limite aceita servir de matéria prima para construções de amores alheios. Assim, a Carência desenvolve o medo de criar outro amor e não se expande mais em busca de outro limite. A Carência perde toda capacidade expansiva e criativa. Resignada, retrai-se nas distrações e nos compromissos, deixando a alma em paz com as carências superficiais e suas satisfações fáceis.     

Mas a rejeição pode ser um consolo para a Carência, quando ela passa a refletir sobre os riscos que envolvem a criação do amor. Tudo é muito incerto, e talvez tivesse sido melhor não apostar. Pode ocorrer de o limite tratar com oportunismo o amor que lhe criaram, abusando da vulnerabilidade e das fraquezas de quem o ama. Além disso, tantos são os casos em que o limite aceita o amor que lhe foi criado e depois, de repente, muda de ideia, preferindo ser quem era antes de ser alcançado pela Carência alheia. Há casos em que o limite passa a ser de outro alguém, o qual lhe parece agora oferecer um amor mais interessante. Também são muitos os casos em que a Carência enjoa de sua própria criação e passa a criar outro amor sobre outro limite, fazendo com que o limite antigo, acostumado a servir-lhe de amor, fique ao léu. Em todos esses casos, o jogo da criação do amor tem um preço caro. Muitos entendem que viver sem pagá-lo é viver mediocremente, outros, por outro lado, preferem o sossego das pequenas carências e seus prazeres fáceis.

E se a Carência, ciente de seu movimento infinito, tomasse as rédeas de seu dom criador para além do monogamismo? E se, como uma esfera, fizesse de todos os limites e de todos os ângulos possíveis uma criação poliamorosa? Quantos amores ela não poderia criar? Fiquemos, então, com a questão: devemos viver a Carência como medíocres ou como criadores de amor ou amores? Seja qual for a resposta, saibamos que a Carência nos ronda, quer entremos ou não em sua expansão infinita. 


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