Para escrever na minha coluna dominical, convidei Ítalo Lima, escritor piauiense, nascido em 1993. Com dois livros publicados: 'Quando a gente se mata numa poesia' (Editora Multifoco, 2017), lançado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro; e 'Tem sempre uma esperança se prostituindo dentro da gente' (Editora Viseu, 2018). Ele é membro da Academia de Letras de Teresina. Lança agora o primeiro livro físico de crônicas eróticas e satíricas: ‘No gozo dos pássaros não há solidão’.
Entro no Uber. Identifico-me. O moço de expressão juvenil me cumprimenta com boa tarde. Eu respondo de volta, boa tarde. Indico o caminho. Ele inicia a corrida. Desenlaço meu cabelo preso. Alguns fios soltos caem no tapete do carro. É quando olho, sem motivo algum, para o banco traseiro e percebo uma moça de cabelo ruivo, ali, sentada assando um pão numa torradeira. Gritei.
— Meu Deus!!
Exagerei no espanto.
— O que essa moça está fazendo aqui?
Perguntei ao motorista. E ele respondeu de supetão:
— É minha namorada! A gente terminou há uns sete meses e desde então ela mora no meu carro.
— Como assim? Sua ex-namorada mora no seu carro? Isso não existe. Pare esse carro agora!
— Em algum lugar a ex tinha que ficar... Em meu coração já não cabe tanta mágoa e o único local confortável era meu carro. Minha mãe me ensinou a dar abrigo a quem precisa. De um jeito ou de outro, a gente sempre guarda o ex da gente em algum lugar: na cabeceira da cama, na quinta gaveta do armário, enlaçado na toalha de banho, na xícara velha... Tantos lugares cabíveis.
Olhei desacreditada no que estava ouvindo. Gaguejei algumas palavras, mas, lá no fundo, eu concordava. Foi aí que olhei para dentro de mim e vi a minha ex acenando no meu peito. Eu nunca havia reparado, mas ela estava lá, esperando para ser percebida. Como a gente pode carregar dentro da gente alguém que já foi embora?
— Pare o carro, eu quero descer!
Desci. Segui perplexa e dei de cara com minha vizinha carregando o ex marido na coleira. Gritei veloz pela rua implorando por um banho de descarrego, com urgência!
Do livro ‘No gozo dos pássaros não solidão’ do escritor Ítalo Lima