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Provocações filosóficas: olhares diversos

Por: Claudinei Pereira
Mestre em Filosofia Ética e Política pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


Da dúvida à cristalização do amor


Data: 30/08/2020 08:17
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Ilustração

Os encontros são inesperados, todavia, podemos nos questionar até que ponto não fazem parte de uma conjuntura de, como diria Nietzsche, do “amor fati” [aceitação e a violação da necessidade]? Isto é, o amor ao destino [lat. Fatum]? Como conjugar “o tempo certo, a hora e a pessoa certa”? Talvez só por meio de uma sensibilidade motivada pela empatia e pela vontade poderemos encontrar uma possível resposta, como diria Kierkegaard, a partir da vontade da conservação.

Amor, paixão, sentimento... características que se convergem quando percebemos que, lembrando Carlos Drummond de Andrade: “O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo acha a razão de ser, já dividido. São dois em um: amor, sublime selo que à vida imprime cor, graça e sentido.” [Amar se aprende amando].

A singeleza, a sensibilidade se fazem perceptíveis quando são correspondidas, quando se deixam envolver pelo sentimento mais “sublime” e mais exigente da experiência humana: o amor. 

O que caracteriza tal amor? Dor, dedicação? Doação? Um simples sentimento motivado e encoberto pelo desejo dos corpos? Ou seja, o amor não seria apenas uma “máscara do desejo”? Neste caso específico, refiro-me à conceituação do amor-paixão de Satendhal, na obra Do amor. Isto é, “o amor que leva-nos a atravessar todos os nossos interesses”. Mas como nasce esse amor? Questiona-se Stendhal. De acordo com o autor, o amor segue os passos da alma: admiração; de falarmos: que prazer dar-lhe beijos, recebê-los; ademais, nasce da esperança... Por isso, “amar é ter prazer em ver, tocar, sentir através de todos os sentidos, e tão perto quando possível, um objeto amável e que nos ama”.

Quero me deter a esta ideia: o processo chamado de cristalização. A cristalização ou solidificação do amor nasce do espírito, de termos a capacidade de “extrair de tudo o que se apresenta a descoberta de que o objeto amado possui novas perfeições”. Aliás, “esse fenômeno, que me permito chamar de cristalização, vem da natureza que nos comanda ter prazer e envia-nos o sangue ao cérebro, do sentimento de que os prazeres aumentam com as perfeições do objeto amado, e também da ideia: ela é minha”. Mas aqui, o pronome “minha” foge da regra gramatical, pois o pronome possessivo trata-se da liberdade poética de ambos: ela é minha, pois faço parte dela.

Porém, todo processo de cristalização se concretiza pela experiência da dúvida. A dúvida, a frieza, os momentos diversos, o caos frequente, a insegurança, o desejo da ingenuidade de prolongar a ideia de “felicidade”... a indiferença. Todos esses elementos fazem parte do processo de cristalização. Não existe amor sem provas, sem desafios, sem provações. “o amante chega a duvidar da felicidade que se prometia; ele se torna severo em relação às razões de esperança que imaginava ser”. A pergunta frequente: será que foram feitos de fato um para o outro? “Será que eles se amam”? A resposta cabe necessariamente aos dois, de até que pontos estão desafiados a encontrá-la.

Talvez a alegria esperada do primeiro encontro se esvai diante do encantamento, “e por minha culpa devo estar lhe perdendo”, ou seja, “não a reverei jamais”. Esse amor, de acordo com o autor, “leva a duvidar das coisas mais demonstradas”. Todavia, a “beleza é necessária para o nascimento do amor”, pois “uma admiração muito viva transforma a menor esperança em decisiva”.

Por isso, a cristalização do amante, sua beleza é a coleção de todas as satisfações possíveis, de todos os desejos que o amante e amado se deixam envolver e se desafiar. 

Mas qual é o fundamento disso tudo? Seria parte do destino ou parte da vontade? Seria parte do plano da destinação divina? Sobre essa questão, existe uma esperança de fé. A narrativa bíblica do caso de amor entre Tobias e Sarah.

A narrativa diz: “Raquel chamou sua filha Sara e, quando ela se apresentou, tomou-a pela mão e entregou-a Tobias, dizendo: recebe-a, pois ela te é dada por esposa, segundo a lei e a sentença escrita no livro de Moisés”. (Cf. Tobias, 7, 12). Como se sabe, a narrativa diz que Tobias era um homem que trilhara os caminhos da verdade, todos os dias de sua vida. Sarah, por sua vez, mulher bela segundo o coração de Deus. Ela fora dada sete vezes em casamento, entretanto, Asmodeu [aquele que faz perecer], o pior dos demônios, matara seus maridos um após o outro, diz a escritura (Trad. Jerusalém). Sendo insultada pela própria serva diante do fato, “a alma de Sarah entristecera-se”. Por outro lado, Tobias, diante de uma viagem longínqua se verá diante da escolha divina “predestina para todo sempre”.

Porém, ambos não faziam ideia do porvir. Deus tinha os escolhidos para todo sempre, diz o anjo a Tobias: “não temas, pois ela foi destinada desde o princípio [...]”. “Ela é te é dada a partir de hoje e para sempre”. É curioso que Tobias chama Sarah de irmã, que tudo indica, remete à literatura romântica do Cântico dos Cânticos (4,9) que remete ao vocabulário das poesias de amor egípcias. Essas poesias, porém, empregam “irmão” para designar o amado. “Roubaste meu coração, minha irmã, noiva minha, roubaste meu coração com um só de teus olhares, uma volta dos colares”. Esse verso revela que o amor não deixa de ser erótico. Isso nos faz lembrar a obra de Kierkegaard O matrimônio em que o autor defende a conjugação do estético (erótico) e religioso no matrimônio. Ou seja, a paixão é defendida como subsistência ao matrimônio. Diante do caráter erótico e religioso do matrimônio, diante do “altar da estética” os amantes “nada temem, porque os perigosos exteriores não podem prevalecer contra eles; e, e quanto aos interiores, a paixão os ignora por completo”. Diante disso, podemos elencar duas diferenças cruciais: o amor romântico e o amor conjugal. Para Kierkegaard, “O amor romântico se faz sempre mais abstrato em si mesmo, e quando não pode assumir uma história exterior é porque já o aguarda a morte, pois sua eternidade é ilusória. Por outro lado, o amor conjugal começa com a posse e revista uma história interior. É fiel, por exemplo, quinze anos, e então chega o momento da recompensa”.

Assim, temos uma história do “amor real” entre Tobias e Sarah, destinada não pela vontade humana, mas pela vontade de Deus. Esse amor se concretiza pelas súplicas e orações a Deus. Aliás, é próprio do amor conjugal aplicar tais atributos, diria Kierkegaard: “é fiel, constante, humilde, paciente, fervoroso, dócil, alegre, virtudes essas que são propriamente disposições do foro interior”. Fazendo justiça a Stendhal, esses atributos fazem parte do processo de cristalização. 

Quantas coisas são necessárias no mundo para que o amor nos encante; duas almas, ungidas uma a outra, e por tudo guia a graça. E na primavera, entre as flores, a lua e seus raios de prata, na perfeita calma de um beijo e dois corações intactos. 

Entretanto, se persistir a dúvida? Se no meio do percurso os amantes chegarem a entender que seus caminhos não fazem parte de seus destinos? Bom, terão que aprender uma das regras mais “inexorável” do amor: “que amar também significa dizer adeus na hora certa! Pois não existe amor sem liberdade. Aliás, o filósofo Kierkegaard, em As obras do amor, já nos alertara: “nem o pássaro que deixas escapar de tua mão, nem a fleta do arco afrouxada, nem o ramo curvado, quando então retorna à sua posição – nada, é tão livre como o coração livre quando este se entrega livremente”. 


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