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Provocações filosóficas: olhares diversos

Por: Claudinei Pereira
Mestre em Filosofia Ética e Política pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


Por que os falsos amores são os mais verdadeiros?


Data: 19/07/2020 07:40
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Este texto não trata de uma experiência particular, mas buscará envolver os leitores às suas próprias experiências observáveis aos quais se permitam envolver! Deste modo, a primeira pergunta que os leitores costumam fazer diante de tal temática é: existe amor verdadeiro? É como se alguém tomasse o texto de Honoré de Balzac Pequenas misérias da vida conjugal e se perguntasse: “são apenas pequenas misérias?” Os jogos inóspitos das máscaras amorosas nos lançam diante de seu teatro: às surpresas que as faces dos amores nos fazem experimentar no seu percurso de glórias e ilusões.

Bom, esta é uma questão que não admite respostas simples. Antes de levar algumas ideias mais especificas, quero me deter primeiro na ideia dos “falsos amores”, isto é, porque eles são admitidos como os mais verdadeiros. Entretanto, fiquem avisados que não tenho autoridade suficiente para dizer o que são os falsos ou os “verdadeiros amores”, mas simplesmente me cabe vos levar a uma “nova” reflexão. Então, quem poderá nos explicar tão promíscua “verdade”? Minha dica é: a vida e às experiências lhe dirão a partir de si mesmo talvez aquilo que não queres ouvir: os falsos amores também têm suas verdades.  

Ao certo, os falsos amores são os mais verdadeiros porque eles não nascem de uma ordem divina, de uma eleição como descrevera a escritura da narrativa poética do Gênesis 2, 23-24 como se observa: “por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne”; ou como se descreve exaustivamente a seguir: Mateus 19, 6: “de modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar”; Provérbios 18, 22: “encontrar uma mulher é encontrar a felicidade, é obter favor de Iahweh”; Malaquias, 2, 15-16: “o que procura esse único ser? Uma descendência de Deus! Guardai-vos, pois, no diz respeito às vossas vidas; não traias a mulher de tua juventude! Porque repudiar por ódio, é estender a violência sobre sua veste, diz Iahweh dos Exércitos”; Efésios 5, 22-24: “sede submissos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres o sejam a seus maridos, como ao Senhor [...] Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos maridos”; Efésios 5, 25: “E vós maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela”; Cântico 8, 6-7: “Quem é essa que sobe do deserto apoiada em seu marido? Sob a macieira te despertei, lá onde tua mãe te concebeu, concebeu e te deu à luz. Coloca-me, como sinete sobre teu coração, como sinete em teu braço. Pois o amor é forte, é como a morte, o ciúme é inflexível como o Xeol. Suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de Iahweh. As águas da torrente jamais poderão apagar o amor”; Hebreus 13, 4: “o matrimônio seja honrado por todos, e o leito conjugal, sem machas, porque Deus julgará os fornicadores e os adúlteros”; e Provérbios 31, 10-11: “ quem encontrarás a mulher de valor? Vale muito mais do que pérolas. Nela confia seu marido, e ela não faltam riquezas”. 

Contrariamente ao que descreve às escrituras, os falsos amores são isentos de leis, de regras, de submissões, de moralismo, de predestinações, de astrologias, de projetos, de sonhos, de realizações conjuntas, de esperanças, pois, a ilusão é sua própria verdade. Ademais, eles são isentos de eternidade ou de sonetos de fidelidade como diria o poeta Vinicius de Morais: 

De tudo ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Os falsos amores não alimentam suas memórias, mas dizem: “não queremos a eternidade, a temporalidade é o que nos fascina”. Neste sentido, aquilo que Carlos Drummond de Andrade afirmara em seu narrativo poema: O tempo passa? Não passa... Cairás por terra.

O tempo passa? Não passa

no abismo do coração.

Lá dentro, perdura a graça

do amor, florindo em canção.

 

O tempo nos aproxima

cada vez mais, nos reduz

a um só verso e uma rima

de mãos e olhos, na luz.

 

Não há tempo consumido

nem tempo a economizar.

O tempo é todo vestido

de amor e tempo de amar.

 

O meu tempo e o teu, amada,

transcendem qualquer medida.

Além do amor, não há nada,

amar é o sumo da vida.

[...]

E nosso amor, que brotou

do tempo, não tem idade,

pois só quem ama escutou

o apelo da eternidade

Contrariamente ao que se narra, o tempo dos falsos amores não é o tempo da poesia, que busca e escuta o apelo da eternidade, mas sua ordem é o percurso cronológico da temporalidade, da finitude, do imediato. Eles não esperam o retorno da ligação, de um bom dia, de uma boa tarde ou de uma boa noite ou de um feliz aniversário. Somos estrangeiros dos prazeres em uma terra sem sabor. Sim, não buscamos intimidade, proximidade, mas simplesmente promiscuidade. Contrariamente aos “verdadeiros amores”, aqui a lei e a ordem é a cristalização do temporal, da hora marca e do amor seguinte. 

Mas alguém pode se perguntar: esse amor vale apena? A resposta não cabe ao mero escritor, mas a ao atento leitor. Imagine que os “verdadeiros amores” são àqueles que o tempo não passa, que Deus os escolheu e que entre divergências e convergências fora surpreendidos por um adeus irreconhecível e inesperado! Ou que diante das pequenas misérias do cotidiano se vê “desanimado, vê-se constantemente obrigado a conduzir o seu amorzinho através de / caminhos espinhosos, onde o seu amor-próprio corre o risco de se despedaçar”, como satiricamente narrara Balzac. Ou chegarás a um momento oportuno de dizeres a si mesmo: “as fantasias do despertar compensam as tristezas do deitar”. Mas eu vos tinha avisado, dirás Balzac. Agora, “não lhe diz nem boa noite, nem meu querido, nem Adolphie; o senhor não existe, não passa de um saco de farinha...” 

Conclusão: no meio do percurso e diante de todos os esforços tu dirás: “nunca imaginara que serias capaz de tal atitude”. Como proferiria Zygmunt Bauman em Amor líquido: “Se cometer um erro, não terás direito ao conforto de pôr a culpa numa informação equivocada. Precisa estar em alerta constante. Se cochilar ou reduzir a vigilância, o problema seu.”

Contrariamente a tais experiências calamitosas, os falsos amores são como o pintor e sua tela: “o pintor não precisa indagar como a tela se sente, lá embaixo, sob toda aquela tinta. As telas de lona ou de linho não apresentam relatórios voluntariamente - embora as telas humanas por vezes o façam”, diria Bauman. Além do mais, o amor em sua caricatura trágica pode ser entendido em sua metamorfose “carne e osso” como um deus cruel, que busca possuir não só a sua alma, mas seu corpo. Nessa nefasticidade, o celebre Karl Marx em A sagrada família já nos alertara: “o amor... é um deus cruel que assim, como toda divindade, quer possuir o homem por inteiro e não se mostra satisfeito antes de ter sacrificado não apenas sua alma, mas também seu ser físico. Seu culto é o sacrifício, e a ápice desse culto é o autossacrifício, o suicídio”. O considerado “amor verdadeiro” ao que parece tem em sua natureza intrínseca a extenuação, o irrespirável. Aliás, ressalta Marcel Conche em A análise do amor: “ninguém pode viver muito tempo se o ar for irrespirável”.  

Àqueles que vivem e buscam a experiências dos “amores verdadeiros” se veem imbricados entre o desencantamento e a surpresa, vivem da “embriaguez do espírito”, alegava o místico belga Jan Van Rubysbroek. “A quimera suplantaria o real, e a existência iria dos sonhos heroicos da juventude às desilusões da idade adulta”. Por isso, perceber a riqueza dos falsos amores é como se adquirir a inteligência dos ratos de esgotos: “que são capazes rapidamente de distinguir comida de iscas venenosas”.  Entretanto, a experiência dos “amores verdadeiros” nos traz algo de paradoxal e libertador, isto é, “todo amor exaltante ultrapassa em opulência em favor o que esperávamos dele: produz-se uma coisa diferente do que queríamos, vemo-nos então literalmente sufocados. As ilusões perdidas são também a porta aberta para este milagre: a decepção maravilhosa” nos afirma Pascal Bruckner em O paradoxo amoroso. 

Além disto, os “verdadeiros amores” costumam proclamar em voz estridente: “nosso amor não é puramente sentimental. Ele não deixa de fora a razão e a vontade. Empenha todas as forças do homem e da mulher, mas deixando-o livre, senhor de si, não governado por seu amor mas governando seu amor. [...] resistimos e nos permitimos resistir à tortura sem falar. O silêncio e aceitação e a superação é a sua sina”. 

Por outro lado, os falsos amores proclamam o jogo consciente de suas verdades: “somos uma empresa, em que as duas partes se colocam em contrato pelo instante; somos frívolos, vivemos sem necessidade de respiração, desoprimimo-nos sem tragédia. De resto, nossa delicadeza é anunciada diante da benevolência da urgência de ver a pessoa desaparecer imediatamente”! Atestaria Bruckner: “Se ela (e) protestar, sabemos como fazê-la a única responsável por seu infortúnio. Pois já vinha sendo avisado. A verdade lhe bate na cara como na última página de um romance policial, como se não bastasse ela (e) ser a culpada (o). Cúmulo da negligência: despachar o outro por SMS como um vulgar vendedor”.  

Como se não bastasse, os “verdadeiros amores” familiarizam-se e suplicam em esperanças pelo retorno do mesmo, levantam preces, se debruçam na janela vendo o horizonte de seus dias a espera do retorno do amado para enfim o presentear como uma festa e cobrir-lhe de beijos, como o pai a espera do filho pródigo, como narra o Evangelho de Lucas: “Ele estava ainda longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos [...] o pai disse aos seus servos: ide, depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado”.   

Não, os falsos amores estão longe do horizonte do encantamento e da repetição. Aliás, sua dramaturgia se assemelha aos facilitadores de divórcio, como nos Estados Unidos e Europa: organizam festas com “bolos de noiva”, “enterro da aliança em caixão”, “vestido de noiva atirado ao fogo”. O que isso significa? Talvez a possibilidade de uma nova era! Por isso, não vos entristeçais, mas alegrai-vos e regozijai-vos, pois, estavas perdido e fora encontrado, nós os falsos amores, somos a própria verdade! Anunciamos a liberdade, celebramos o direito pela libertação da expressão: “Eu te amo: o mais íntimo dirigido ao mais anônimo, a primeira vez como repetição de uma antiquíssima litania”. Parafraseando Bruckner: os falsos amores buscam “criar palavras únicas que só se valem para o instante e que as profiro e que se desintegrassem em seguida”. Somos fugidios! Estes se libertaram do “eu te amo” enquanto prece, enquanto liturgia, enquanto dívida. Suas preces não lhe aquecessem mais os lábios e não se veem mais como perturbação. Eles solenizam a superexcitação de não mais estarem aprisionados em querelas ou na desordem que se tinham mergulhados. “É a colisão de uma verticalização na calma plana da existência; dor e fruição, borrasca e recobramento, é queimadura e perfume.”

Conquanto, os “verdadeiros amores” se veem embriagados por tal expressão, ainda não tiveram a “lucidez da maravilhosa graça” da verdade que se esconde paradoxalmente nos falsos amores, por isso, “sob a embriaguez do eu te amo dissimula-se a vontade de agarrar o outro para obrigá-lo a me responder. Ao mesmo tempo em que confesso minha perturbação, faço a pergunta: e você, me ama? Se, por milagre, ele responder sim, eu me acalmo, entro na jubilação da reciprocidade. [...] O Compromisso é tão importante que o eu te amo não tolera o advérbio: nem um pouco nem muito, é um absoluto em si, que encerra e reage a questão”, afirmara Bruckner.  Aliás, a expressão vou te amar sempre, leva aos “amores verdadeiros” a uma culpa sentencial irreparável se não o fora cumprida. Por isso, “a fórmula compromete aquele que a pronuncia no momento em que a diz”. Indubitavelmente “eu entrei em um universo de alto risco em que a catástrofe pode ocorrer a todo instante”. Este é o preço do “amor verdadeiro” em sua mais radical crueza: já não somos mais “livres o bastante”. Porém, alguém mais apressado em sua reflexão, venha a se perguntar: “Mas amar verdadeiramente não significa ser livre?” Como também nos “garante” Søren Kierkegaard em As obras do amor: “nada, nada é tão é tão livre como um coração livre quando este se estrega livremente”. Bom, tu o dirás o preço e grau de sua própria liberdade. 

Entretanto, nasce em meio a tais paradoxos uma nova lei, um novo cogito: “eu te amo, portanto, nós somos. Mas o ser que o outro nos confere ao nos amar não é senão um talvez”. Ademais, a expressão eu te amo nos revela uma fatalidade funesta: “todo ser amado é fatal por natureza: não haverá multidões, será ele e ninguém mais a representar até nosso último suspiro a figura do destino, mesmo quando nos tiver deixado”. Aliás, a representação de um ex nada mais é que uma libertação, mas ao mesmo tempo a metamorfose de um fantasma.

Neste sentido, não é simplesmente um virar a página, mas se trata “de seres antigos que ressoam em você muito tempo depois da partida, e voltam para assombrá-lo, para puxá-lo pela manga”, ressalva Bruckner. No mais, os sacrifícios do “amor verdadeiro” é a subtração do ser da natureza, é a desertificação do mundo e de ter apenas alguém ao qual se comprometera. Entretanto, vos deixo vigilantes: “Esse sacrifício, porém, exige reembolso e se possível com juros”.  

Mas observem bem caros leitores: “os verdadeiros amores” necessitam dos falsos amores dialeticamente. É como se os falsos amores fossem seu espelho limítrofe que necessita de luz para caminhar. Eles são como O Bom Pastor que cuida de suas ovelhas, que “em verdes pastagens me faz repousar, para as águas tranquilas me conduz e restaura minhas forças”. Estes estavam comigo “pelo vale tenebroso da morte, e me restituiu, pois agora, sou eu outra vez”. “Sou eu de novo, eu mesmo. Este eu mesmo, que na estrada ninguém apanharia do chão, é outra vez meu. A cisão que havia no meu ser está anulada; eis-me novamente unificado”, diria Kierkegaard em A repetição. 

 Por fim, eles lhe ensinaram aquilo que não queres defrontar: “que a felicidade é um tabu”. Colocar-te dia e noite diante dessa verdade: “que em uma de nossas tantas misérias é que nós somos felizes para sempre”, diria François-René Chateaubriand. Mas o que são mesmo os “verdadeiros amores” e os falsos amores? Como se caracterizam para além dessa descrição e o que eles nos revelam? Quais são suas verdades? Bom, não espere de mim a resposta que desejas ouvir, mas me cabe vos alertar para uma última verdade dita pelo azedo La Rochefoucauld em suas Reflexões ou sentenças e máximas morais: “todas as paixões nos fazem cometer erros, mas o amor nos fazem cometer os mais ridículos”. 


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