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Provocações filosóficas: olhares diversos

Por: Claudinei Pereira
Mestre em Filosofia Ética e Política pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


Eu, eu mesmo e o isolamento social


Data: 21/06/2020 10:29
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Na minha coluna dominical, convidei o amigo Matheus Schmaelter, para fazer uma abordagem sobre o isolamento social mediante a pandemia da Covid-19.

A necessidade de um isolamento social por causa da Covid-19 chegou com urgência e pegou a todos, no mundo inteiro, de surpresa. Foi até interessante nos primeiros dias, onde a possibilidade de pôr em dia projetos estacionados fez brilhar os olhos daqueles que sempre estavam ocupados demais para isso. Mas, algumas semanas depois, o isolamento já tinha se tornado um incômodo. Era normal que isso acontecesse, afinal, Aristóteles, um dos maiores filósofos da antiguidade grega, já afirmava que o ser humano é um animal político, o que quer dizer que o ser humano se constitui em suas relações sociais.

Mas, se por um lado é normal haver desconforto e tristeza diante da impossibilidade de se levar normalmente a vida como ir à padaria ou encontrar os amigos sem a preocupação de pôr a vida em risco, por outro lado devemos encarar com cautela o verdadeiro desespero de algumas pessoas que, à semelhança da vilã Nazareth Tedesco, personagem interpretada pela atriz Renata Sorrah na novela Senhora do Destino, encaram o isolamento social como uma prisão e acreditam que, ao assumi-lo, estarão perdendo completamente suas vidas. Qual será a origem desse desespero e por que essas pessoas acreditam que suas vidas só têm sentido se mantiverem, sem interrupção, sua relação com o “mundo lá fora”?

Uma possível resposta para essas perguntas nós podemos encontrar no pensamento existencial de Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês do século XIX, que afirmava que todo ser humano possui um si mesmo que é o seu (seu próprio Eu, digamos assim) mas que tem, também, a tarefa de tornar-se si mesmo. Isso, de fato, não é uma tarefa simples nem de compreender nem de empreender, pois como é possível alguém se tornar algo que já possui e o que falta a essa pessoa para que ela possa tornar-se esse si mesmo?

Em sua obra intitulada A doença para a morte, de 1849, Kierkegaard busca demonstrar que o ser humano é uma síntese de elementos opostos, como finito e infinito, necessidade e possibilidade. Esses elementos se mostram, na filosofia de Kierkegaard, de maneira existencial. Assim, o finito é o que nos limita em nossa realidade; o infinito é tudo o que podemos pensar a nosso respeito a partir da imaginação; necessidade é tudo o que delimita um indivíduo em sua condição; e possibilidade, como o próprio nome aponta, são todas as possibilidades que podemos vislumbrar. Assim é todo ser humano, segundo nosso filósofo, mas isso ainda não constitui o si mesmo de cada indivíduo humano.

Para tornar-se o si mesmo que é o seu, o indivíduo deve ter consciência, ou seja, saber que é assim constituído, querer ser si mesmo, quer dizer, aceitar essa condição, e buscar em sua existência o equilíbrio dessa síntese. Como? Considerando que as infinitas possibilidades que pode imaginar devem ser delimitadas pelas necessidades finitas às quais está vinculado e, ao mesmo tempo, considerar que sua necessidade finita deve ser ventilada pelas possibilidades que são abertas, de modo a poder “respirar um pouco”. É como ler um livro: se a cada momento nos deixarmos levar pela vontade de ler um livro diferente, nunca terminaremos nenhum deles. Mas, também, se só nos dedicarmos a ler um livro, deixando de fora qualquer outra tarefa, como assistir ao jornal, ficaremos estafados dessa tarefa. Dá-se o mesmo com o ser humano. Se pensarmos que tudo está determinado e que nada pode ser alterado, viveremos alheios a nós mesmos, entregues às demandas determinadas. Se, por outro lado, pensarmos que tudo está em aberto, nos perdemos em meio às infinitas possibilidades que se nos apresentam e não nos realizamos em nossa própria existência. Tornar-se si mesmo está, então, relacionado ao equilíbrio entre as necessidades e possibilidades da existência, numa relação dialética, ou seja, uma relação em que não se pode pensar uma coisa sem a outra. Viver só na necessidade ou só nas possibilidades é o que Kierkegaard chama de desespero e este desespero só pode ser erradicado mediante o equilíbrio dessa síntese.

Assim, podemos responder às perguntas “como é possível alguém se tornar algo que já possui?” e “o que falta a essa pessoa para que ela possa tornar-se si mesmo?”. Para uma pessoa tornar-se o si mesmo que é o seu, ela precisa, por assim dizer, tomar posse desse si mesmo, que está sob domínio de determinações exteriores que só estimulam as nossas sensações imediatas (prazer, dor, alegria, tristeza, etc.). Para isso, falta a ela ter consciência de possuir um si mesmo e querer ser esse si mesmo que é o seu, em suas próprias necessidades e possibilidades, sem a adição de qualquer elemento que existe fora de sua condição. Falta, principalmente, relacionar-se inteiramente com o si mesmo que é o seu.

A origem do desespero diante do isolamento social é, justamente, a alienação do si mesmo às forças imediatas exteriores, como o prazer de encontrar pessoas e passear pela cidade ou mesmo o sofrimento de estar trancado dentro de casa, às quais a pessoa desesperada irrefletidamente se entrega, e é por ter sempre vivido nessa condição, sujeita às sensações, que ela acredita que o sentido de toda a sua vida está em sempre experimentar momentos que gerem esse prazer ou sofrimento, que é meramente finito e temporal. Esse modo de vida coloca um obstáculo entre o ser humano e seu si mesmo, pois ele dificilmente reflete sobre si mesmo e sua condição. Não é raro que pessoas assim se sintam desconfortáveis em estar sozinhas ou em silêncio, o que é especialmente comum no mundo hiperconectado em que vivemos atualmente.

Se essa explicação foi suficiente para que o leitor compreenda a tarefa de tornar-se si mesmo, devemos agora pensar como é possível empreendê-la. Em Adquirir a sua alma na paciência, um de seus discursos edificantes (uma espécie de sermão), Kierkegaard afirma que a alma (o si mesmo) se adquire na paciência. Mas essa não é uma paciência comum, como aquela que devemos ter quando realizamos um trabalho enfadonho. É, antes, a de alguém que se ocupa pacientemente de sua tarefa como, por exemplo, um poeta, que escolhe cuidadosamente, ou seja, pacientemente, as palavras para a composição de seu poema e que, independente das circunstâncias de sua vida, sejam elas boas ou ruins, permanece pacientemente na sua tarefa. Não é, portanto, uma paciência que espera, passivamente, mas uma paciência ativa, que trabalha arduamente.

A maneira, talvez a única, de empreender a tarefa de tornar-se si mesmo é na paciência, uma tarefa que é trabalhada à maneira do artesão, que produz sua arte a partir das ferramentas e do material que dispõe, instante após instante, pacientemente.

O isolamento social provocado pela crise do novo Coronavírus pode ser a oportunidade perfeita (a crise!) para nos levar a refletir sobre nossa própria condição e, assim, erradicar o desespero na concretização do si mesmo, em uma síntese equilibrada, consciente de si e bem relacionada consigo e com o modo como essa síntese foi primeiramente estabelecida.


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