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Verso e prosa: a literatura e seus reflexos

Por: Adonay Moreira
Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão e autor de cinco livros, entre poesia e prosa: Sentimentos (poesia/2011), Poemas (poesia/2012), O Livro dos Poemas Invisíveis (poesia/2015), O Labirinto (prosa/2015) e Sobre Luzes e Sombras (poesia/2017). Foi ganhador, em 2013, do 35º Concurso Literário Cidade de São Luís, com a novela O Labirinto. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT) da UFMA.


O elogio do cotidiano


Data: 16/05/2021 06:58
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Reprodução

É de Gorki a feliz observação de que na obra de nenhum outro autor se revelou com igual força e maestria a tragédia dos pequenos acontecimentos da vida do que nos textos de Tchékhov. E nada é mais verdadeiro do que isso, em se tratando do autor de “O Jardim das Cerejeiras”, “A Gaivota”, “As Três Irmãs” e “Tio Vânia”.

Tchékhov pertence ao seleto grupo dos maiores dramaturgos que a moderna literatura ocidental foi capaz de criar, figurando ao lado de mestres do gênero como Henrik Ibsen e Luigi Pirandello, dois dos autores mais importantes da moderna dramaturgia ocidental. Carpeaux chegou mesmo a afirmar que Pirandello representa o suprassumo do teatro contemporâneo, sendo o último representante genuíno dessa arte que encontrou no bardo inglês o seu momento áureo. Há quem conteste essa observação, mas o caso é que, vista com olhos claros, a obra de Pirandello é de fato um acontecimento magnífico. Nenhum estudioso de teatro ou mesmo um simples e fiel leitor de literatura ficará indiferente a obras como “Seis Personagens à Procura de um Autor” e “O Falecido Matias Pascal”, que são, certamente, duas de suas obras mais conhecidas pelo grande público.

Infelizmente, as peças de Tchékhov quase não são mais encenadas hoje, sobretudo em uma época na qual o gosto pelo exótico e pelo grotesco vem a cada dia sobrepujando qualquer vestígio de requinte literário, como uma chama que faz arderem até mesmo as flores mais delicadas. Não deixa de ser lamentável tudo isso. Não, certamente, para o grande dramaturgo russo, é verdade, que já tem o seu lugar assegurado entre os grandes escritores ocidentais, constituindo sua obra presença obrigatória em qualquer cânone que se preze. O prejuízo é nosso, que somos privados do contato com a genialidade desse homem tão sensível e delicado.

Tchékhov exerceu com maestria o conto e o teatro, aventurando-se poucas vezes em outro gênero. Deve-se admitir que a novela “A Estepe”, ainda que seja um grande texto, não pode se comparar às suas criações mais sofisticadas no conto e no teatro. Nesses dois gêneros é que o autor russo exibiu ao mundo todo o seu talento.

É costume a crítica hesitar quanto à classificação de sua obra. Há quem veja nela algum toque de expressionismo, o que não é de todo um equívoco. Entanto, a crítica, tão preocupada em classificar e catalogar, acaba atribuindo à obra de Tchékhov aspectos que não necessariamente fazem parte de sua expressão estética.

Tchékhov foi, antes de tudo, um realista. Não um realista à maneira de Flaubert. Foi, isso sim, um realista naquele mesmo sentido em que se classificou Dostoiévski: um realista da alma humana. É somente nesse sentido que se pode compreender tanto o teatro quanto o conto tchékhovianos.

Tchékhov não estava de forma alguma interessado em traçar grandes painéis realistas da vida russa, tal como se propuseram fazer autores como Gogol, Tolstói e Dostoiévski, cada um à sua maneira. O que lhe interessava era, acima de tudo, o próprio homem e a sua condição como homem, encontrando-se onde quer que fosse, ocupando qualquer posição. É por isso que em sua obra toda a Rússia desfila: dos pobres mujiques em suas isbás miseráveis aos poderosos nobres de São Petersburgo; dos loucos e analfabetos aos intelectuais, nada escapa de seu olhar agudo e penetrante.

Seus personagens são de tal modo humanos que chegam mesmo a nos impressionar com tanta vida. Assim como Shakespeare, Tchékhov possuía um poder quase demoníaco de revelar a psicologia de seus personagens apenas com uma frase ou com uma simples descrição. E nisso ele foi um verdadeiro mestre, tendo poucos autores que se lhe possam comparar.

Antes de tudo, o que ele nos revela são seres esmagados pela própria vida, sonhando ou fingindo sonhar que estão vivendo. E isso certamente vem de sua profunda experiência com a pobreza e a miséria, duas fiéis companheiras ao longo de sua triste e curta vida. Esse aprendizado o fez entrar em contato com a face real do mundo, e, em se tratando da Rússia do final do século XIX e início do século XX, podemos imaginar que essa face não era assim tão bela.

Contudo, sob nenhuma hipótese se pode considerar Tchékhov um pessimista. Ao contrário. O que vive e fala em seus textos é a própria vida, mas uma vida tal como ela é, descrita por olhos extremamente humanos e lúcidos. Tchékhov sabia perfeitamente que a função de um artista, seja ele quem for, não é revelar a verdade, como se ele fosse uma criatura enviada por forças divinas. Tampouco concebia a criação literária como uma forma engajada de combate às mazelas sociais, que eram, à época, gritantes em seu país. Seu gênio estava muito acima disso, e, assim como Dostoiévski, ele professava a religião da independência intelectual do artista, um credo tão desencorajado nesses nossos tempos, nos quais documentários ou reportagens jornalísticas tomam o lugar antes pertencente à literatura.

Tchékhov sabia que a complexidade da condição humana vai muito além das necessidades do estômago. E por isso foi grande, não se prendendo aos lugares-comuns que haviam infectado grandes autores do século XIX, dentre esses os mestres da própria literatura russa, como é exemplar o caso de Tolstói, convertido em messias no final da vida, fase na qual seus textos, ainda que guardando a mesma elegância e profundidade que lhe são características, chegam a feder a ranço e a um certo moralismo excessivo.

A humanidade que aparece em Tchékhov está acima dos velhos e desgastados maniqueísmos. Seus personagens estão todos sujeitos ao medo e à loucura, à ambição e ao fracasso, não importando quem sejam ou qual cargo ocupem. Tchékhov era apaixonado pela vida e, como um bom amante, foi-lhe sempre fiel. Um artista peca ao tentar mascarar a realidade com os seus sonhos, sobretudo se essa máscara segue a cartilha de alguma doutrina específica, seja ela qual for. Sua função não é doutrinar ou moralizar nada nem ninguém, muito menos revelar alguma coisa. É preciso ser um deus ou um louco para acreditar que, com uma obra de arte, alguém pode revelar alguma coisa do mistério do mundo. Hamlet nos ensina muita coisa, mas não nos revela nada. Podemos aprender com os personagens de Knut Hamsun que a vida às vezes é sublime, às vezes é miserável, porém ele não nos dá nenhuma senha secreta para a decifração dos enigmas da existência, e isso por uma razão simples: é porque ele, como de resto todo bom mortal, seja ele artista ou não, é apenas um ser humano e, como tal, é somente mais uma das engrenagens que formam esse mundo. Verdade que os artistas nos ensinam a ver a existência com outros olhos e tornam a vida um pouco melhor, mas isso é outra coisa.

O que Tchékhov nos apresenta é a vida mesma, com seus dramas diários. O homem russo jamais havia sido tão milimetricamente descrito antes dele. Tchékhov foi inigualável na arte da sutileza. Um riso, uma frase, uma simples descrição e temos diante de nossos olhos um ser humano real, com toda carga de complexidade que um ser humano é capaz de ter. Até mesmo em seus relatos mais simples e mais sintéticos podemos sentir a vida a pulsar de forma diferente. Contos como “A Morte do Funcionário”, “A Irrequieta”, “A Obra de Arte”, “Numa Sessão de Hipnotismo”, “A Palerma” e “No Departamento dos Correios”, que não estão entre seus textos mais célebres, já nos põem em contato com a visão de mundo tchékhoviana. Os personagens que aí aparecem são feitos de carne e sangue, e não de tinta. Rodin fazia suas esculturas surgirem do fundo silencioso dos minérios; Tchékhov fazia seus personagens emergirem, vivos e espontâneos, do fundo negro do tinteiro.

A vida que eles respiram é a nossa mesma vida. Não há nada de fantástico ou de espetacular no mundo tchékhoviano: tudo nele cheira ao mais completo cotidiano. E foi justamente na existência diária que ele colheu o material com o qual compôs uma das obras mais importantes da literatura ocidental. Tchékhov como que pinta diante de nossos olhos um verdadeiro painel, mas um painel espiritual. Seus pequenos dramas, suas comédias, suas tragédias, todo o seu prodigioso mundo se arrasta lentamente, às vezes com um riso amarelo no canto dos lábios. Ao contrário da maioria dos escritores, ele não nos moraliza, não nos doutrina, muito menos está interessado em nos revelar alguma grande verdade sobre a existência humana. Pelo contrário. Tchékhov nos convida a olhar a vida, como alguém que leva uma criança a olhar o mundo pela janela e deixa que ela mesma tire as conclusões que julgar necessárias.

Poucos autores na literatura ocidental foram tão fiéis à sua função quanto ele. Poucos souberam dar voz aos homens sem se importar com os estereótipos de classe, de inteligência ou seja lá do que for. Para um artista verdadeiro, o que de fato importa é a vida, e foi justamente a vida que sempre lhe interessou. E é essa mesma vida que ele nos oferta em seus contos e em suas peças de teatro.

É quase impossível não nos impressionar com o drama vivido por Olga, Irina e Macha, as três protagonistas da peça “As Três Irmãs”, assim como é impossível não ficarmos comovidos com o solitário e bobo cocheiro Yona Potapov, descrito no conto “Angústia”, que é, sob muitos aspectos, um dos melhores textos da imensa galeria dos contos tchékhovianos. A leitura de seus textos é como um passeio: as pessoas e seres que nele encontramos podemos vê-los a um passo de nossa casa.

Bem verdade que todos os grandes personagens são, de alguma forma, seres vivos e reais, e quase todo mundo guarda na alma alguma coisa de Otelo, de Gregor Samsa ou de Alonso Quijano. Contudo, o sonho que eles sonham por vezes está afastado de nós. Não é todo dia que podemos encontrar um Hamlet comprando pão próximo à nossa casa, bem como é pouco provável que encontremos com facilidade um personagem como o Quixote a passear pelos parques de nossa cidade, à procura de gigantes e de dragões. Eles existem, é verdade, mas raramente podemos vê-los. Estão dormindo no fundo de nossa imaginação, e poucas vezes são trazidos para o nosso estranho mundo banal. Ao passo que a todo instante nos deparamos com os personagens de Tchékhov. Um funcionário público, algum jovem professor de gramática, uma velha atriz aposentada, uma solteirona, todos esses são personagens da grande obra de Tchékhov e parecem estar sempre perto de nós, quase ao toque de nossos dedos. E nenhum outro escritor na literatura ocidental superou o grande russo na pintura dos dramas desses seres anônimos, que nascem e desaparecem aos milhões sem serem notados, como as flores e as ervas do campo.

Shakespeare escreveu certa vez que somos feitos da mesma matéria dos sonhos. E isso é uma verdade irrefutável. Só que, na obra de Tchékhov, esse sonho nos dá a impressão de que também pode ser sonhado por nós.


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