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Verso e prosa: a literatura e seus reflexos

Por: Adonay Moreira
Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão e autor de cinco livros, entre poesia e prosa: Sentimentos (poesia/2011), Poemas (poesia/2012), O Livro dos Poemas Invisíveis (poesia/2015), O Labirinto (prosa/2015) e Sobre Luzes e Sombras (poesia/2017). Foi ganhador, em 2013, do 35º Concurso Literário Cidade de São Luís, com a novela O Labirinto. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT) da UFMA.


Um canto rumo à noite


Data: 06/09/2020 13:36
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Há homens que são maiores do que o seu próprio destino. Esse é, ao que parece, o caso de Stefan Zweig. Sua fama mundial, seu imenso prestígio entre o público e a crítica, seu estilo leve, marcado, em grande parte, pelo impacto da psicanálise de Freud e por algo de um certo romantismo tardio próprio da Viena de sua época, sua personalidade afável, seu intenso humanismo, tudo isso prenunciava-lhe um destino glorioso, tão brilhante como seus ensaios e tão intenso quanto o fio sedutor que amarra suas tão belas biografias. Porém, ao contrário do que comumente se apregoa, o sol não é para todos. E todo esse brilho que cercava esse homem elegante e sábio não fez senão tornar ainda mais trágico todo o seu destino. 

Zweig não fugiu à sina da grande maioria dos escritores de sua época, sobretudo por sua origem judaica e por suas críticas ferozes à grande noite que se abatia sobre a Europa, uma noite profunda e extremamente negra, da qual o velho continente demoraria muito tempo para despertar, obtendo um pouco de luz sob as exigências de um preço enorme. Como muitos outros autores, esse nobre filho de Viena já não mais se identificava com os homens que, um século antes, jactavam-se como crianças com suas descobertas científicas e exibiam ao sol sua tão alegre e gloriosa face desnuda. Mas há um preço para tudo. O Prometeu que traz o fogo aos homens é o mesmo indivíduo que é condenado ao martírio eterno. Com a Europa não seria diferente. E, de alguma forma, estava-lhe reservado um destino ainda mais cruel do que aquele oferecido ao pobre filho do Olimpo, pois seu martírio não foi individual, ele mergulhou nas trevas populações inteiras e imprimiu em todo o século XX uma marca bestial, cujo símbolo ainda hoje faz tremerem muitos corações. Nenhum homem está livre do horror, é verdade. Mas há os que o experimentam com mais intensidade. E Stefan Zweig encontra-se nessa lista nada gloriosa.  

Ao contrário do que ocorre com muitos escritores europeus, em relação aos quais podemos manter apenas uma relação de leitor admirado ou de crítico severo, os laços que unem Stefan Zweig ao Brasil são muito mais intensos do que aqueles que habitualmente se dão entre um artista e seu público. Zweig, como muitos outros viajantes, não deixou de nutrir por esse grande país um amor incondicional, fruto, em grande parte, de seu eterno romantismo e da busca inquietante por um novo lar. A Europa, que se desfazia em ruínas, já não mais teria como fornecer-lhe um abrigo seguro. Um espírito sensível pode resistir a quase tudo, menos à barbárie. E não era outra coisa senão a barbárie que marchava a passos largos em toda a Europa. 

Não é de se admirar, portanto, que um tal indivíduo tenha visto nos risos fáceis e aparentemente dóceis dos habitantes desse pretenso paraíso tropical um refúgio que se amoldava perfeitamente aos seus objetivos. Muitos escritores, de alguma forma, também apelaram a esse recurso e viram nas Américas um novo lar, um exílio possível, no qual estariam livres da grande besta que vagava pelo velho continente. Não é estranho, então, que se leia nas memórias de um homem como André Maurois, certamente uma das consciências mais lúcidas de seu tempo, trechos como: 

“De que é que tanto gostei? De tudo – dos belos vales, dos rios gigantescos, do verde brilhante das árvores, da graça das villages de New England. Depois, da mocidade e da confiança. A América de 1927 não era ceptica [sic] e inquieta como a posterior a 1914. Nas Universidades, o ardor, o desejo de aprender, a fé nos destinos humanos me haviam repousado das negações europeias. Gostei do clima de benevolência e camaradagem que é o da vida social. Não há dúvida que havia lá, como em toda parte, o egoísmo dos que têm, a inveja dos desgraçados e a crítica muitas vezes estéril dos intelectuais. Mas essas reações comuns a todas as sociedades me pareceram temperadas por um sincero desejo de não produzir mal inútil”.

É bastante compreensível que um homem dotado de certa sensibilidade, em meio a uma época genuinamente caótica, veja em um pouco de paz, ainda que esta seja aparente e temporária, um verdadeiro paraíso terrestre, e não é em vão que esse bom francês confessa defender o famoso credo de Goethe: “Prefiro uma injustiça a uma desordem”. A sentença é questionável, por certo. Mas há momentos nos quais até mesmo um grande espírito cede mais espaço às suas emoções do que à sua racionalidade. Talvez para fugir a esse equívoco tenha Friedrich Hölderlin escrito: “Se você tiver cabeça e coração, mostre apenas um de cada vez”.  Muitos erros deixariam de existir se a humanidade ouvisse essa pequena máxima. 

As memórias de André Maurois, entanto, não cobrem toda a Segunda Grande Guerra. Elas findam em outubro de 1941, um ano antes da morte de Stefan Zweig, e, por mais que então já se estivesse em pleno desenrolar do grande conflito, esse homenzinho sensível e perplexo ante os caminhos trilhados por sua Europa não deixou dos anos posteriores um relato tão profundo e realista. Mas as impressões que essa grande crise deve ter deixado em sua alma certamente o colocaram diante de uma profunda necessidade de revisar muitos de seus postulados, pois agora se dava a época em que conviviam na mais perfeita harmonia toda a desordem e toda a injustiça.      

 Zweig também não viveu os horrores de toda a Segunda Guerra Mundial, nem padeceu, como muitos de seu povo, nos nebulosos campos de concentração que, como uma peste, espalharam-se pela Europa, como nefastas oferendas aos deuses da morte e da destruição. Entanto, foi-lhe destinado um holocausto particular, não menos doloroso e intenso do que os praticados pelos nazistas, cuja descrição ainda agora assombram qualquer espírito, como demonstrou Primo Levi em seu relato “É isso um homem?”. 

É particularmente irônico o fato de que tal holocausto tenha se dado no mesmo paraíso que o nobre austríaco escolhera para viver e em relação ao qual tecera os mais belos elogios, como se nota em seu estudo “Brasil, país do futuro”. Suas observações, ainda que por vezes bastante pertinentes, não raro apresentam uma grande ingenuidade. Somente sua condição de estrangeiro e homem em fuga justifica trechos como:

“E agora se sabe por que o indivíduo sente a alma tão aliviada logo que pisa esta terra. Primeiramente, pensa que esse efeito calmante é apenas alegria dos olhos, e gozo dessa beleza sem par que, por assim dizer... de braços abertos chama a si o indivíduo que acaba de chegar. Mas em breve se reconhece que essa disposição harmônica da natureza aqui se transmitiu ao modo de vida de uma nação inteira. Alguém que acabou de fugir da absurda exaltação da Europa, saúda aqui a ausência completa de qualquer odiosidade na vida pública e particular, primeiramente como coisa inverossímil e depois como imenso benefício. A terrível tensão que há um decênio repuxa os nossos nervos, aqui desaparece, quase completamente; todos os antagonismos, mesmo os sociais, aqui, são muitíssimo menos acentuados e não têm uma seta envenenada. Aqui a política com todas as perfídias ainda não é o ponto cardeal da vida privada, não é o centro de todo o pensar e sentir”.

Os acontecimentos futuros iriam desmentir essa bela imagem criada de um paraíso terrestre, no qual o grande autor encontraria, ao invés de um lar, uma sepultura. Zweig conheceu bem o Brasil, é certo. Frequentou o interior de nosso imenso continente, subiu morros, participou como poucos da vida cotidiana daquele país de então, experiências essas que o levaram a escrever esse entusiasmado livro que é “Brasil, país do futuro”, o qual, se não fosse a realidade, teria tudo para ser uma grande obra. Zweig escreveu, sem querer, a sua utopia, a utopia de um mundo no qual um homem pode viver longe da miséria e do terror. No fundo, é essa a única utopia possível a um indivíduo exilado. Entanto, isso em grande parte não vem a ser estritamente culpa sua. A imagem de um Brasil como um refúgio selvagem, no qual Deus de alguma forma reside, é muito mais antiga. E não é sem espanto que vemos Molière, através de seu personagem Júlio, escrever em “O avarento”:

“E é certo, e muito certo.

Num sertão do Brasil! que paraíso aberto 

a quem foge do mundo! ali, calco eu por vil 

o ouro que almejo cá. Florestas do Brasil, 

ides ter vossa Eva, a quem no ano inteiro 

presenteeis cos dons de um Deus, seu pomareiro”.

Zweig também buscou refúgio nesse “paraíso aberto a quem foge do mundo”. Mas sua fuga não teve como fim senão um grande malogro. Seu olhar entusiasmado fez com que lhe passassem despercebidos certos traços que, se observados, arrefeceriam em grande parte todo seu fervor tropical. E, para sua total miséria, essa atenção só lhe foi possível quando o preço exigido por tal argúcia não foi outro senão sua própria vida. Mesmo o paraíso contém suas misérias e, para evitá-las, é imprescindível um olhar atento e repleto de cuidado, que veja nas folhas das árvores muito mais do que o verde que elas exibem. Seu conhecimento do “Brasil real” lhe cegou a consciência para o “Brasil oficial”, cuja força caricata, como o conceituava o Bruxo do Cosme Velho, o destruiu. O mesmo homem que recorda com uma lucidez assombrosa a Viena de sua infância e é capaz de perceber, como historiador competente que era, todas as nuances das mudanças das mais variadas épocas e dos mais distintos povos, foi o mesmo que, como uma criança em férias, só viu beleza ao redor de seu próprio túmulo. 

No fundo, Stefan Zweig buscava aquele mesmo mundo seguro de sua infância, aquele mundo eivado de certa magia, o qual, em sua autobiografia “O mundo de ontem – memórias de um europeu”, descreve como um verdadeiro paraíso:

“AO TENTAR ENCONTRAR uma definição prática para o tempo antes da Primeira Guerra Mundial, no qual me criei, espero acertar dizendo: foi a época áurea da segurança. Tudo na nossa monarquia austríaca quase milenar parecia estar fundamentado na perenidade, e o próprio Estado parecia ser o avalista supremo dessa estabilidade. Os direitos que concedia aos seus cidadãos eram assegurados por escrito pelo Parlamento, a representação livremente eleita pelo povo, e cada dever era delimitado com precisão”.  

Toda essa ordem é de fato admirável. E é compreensível que um homem, em meio ao terror, busque abrigo em sua memória. Porém, se esse mundo organizado lhe foi possível na Áustria, não o seria no Brasil. Nesse paraíso soberbo, Zweig só encontraria a morte, à qual se direcionou, junto com sua esposa, Lotte, em 1942, na bela cidade de Petrópolis, deixando todo o mundo perplexo. 

Há muitos motivos que levam um homem a cometer suicídio, desde os mais simples aos mais complexos. Como afirmava Camus, às vezes um homem apenas percebe que está cheia sua medida e, em uma questão de segundos, corta os fios que o amarram à vida. “O verme se encontra no coração do homem. Lá é que se deve procurá-lo”, afirma o argelino em seu impressionante “O mito de Sísifo”. Mas nem todo os corações são acessíveis. No caso de Stefan Zweig, o verme estava também na Europa e na exuberante paisagem tropical do Brasil, ainda que, em sua carta final, escrita pouco antes de se suicidar, declare ele um amor incondicional a essa terra e a sua gente. 

O testemunho mais profundo dessa agonia, entanto, encontra-se em seus últimos versos, cuja tradução de Manuel Bandeira dá um brilho especial. Nessa confissão dolorida e ao mesmo tempo corajosa, vemos em que abismos estava mergulhada a alma desse homem sensível e desesperado, que tentou cultivar a lucidez até o fim de seus dias, até quando, não suportando a vida, deixou-se abandonar, entregando-se completamente à morte. É o canto do cisne, uma canção rumo à noite, a mais negra das noites, para a qual não há nenhum amanhecer. São versos a um só tempo cortantes e brandos:

Suaves as horas bailam sobre

O cabelo branco e raro.

A áurea taça a borra cobre:

Sorvida, eis o fundo, claro!

 

Pressentimento da morte

Não turva, é alívio profundo.

O gozo mais puro e forte

Da contemplação do Mundo.

 

Só o tem quem nada cobice,

Nem lamente o que já não teve,

Quem já ao partir na velhice

Sinta - um partir mais de leve.

 

O olhar despede mais chama

No instante da despedida.

E é na renúncia que se ama

Mais intensamente a vida.

É um testemunho poderoso, sincero e comovido. É o adeus de um grande artista, um triste adeus em meio a um indiferente e silencioso paraíso. “A vida é um jogo do qual ninguém pode, em nenhum momento, retirar-se com o que ganhou”, escreve André Maurois em suas memórias. E poucas vezes isso foi tão verdadeiro como no caso de Stefan Zweig. Talvez, após a morte, tenha ele encontrado sua tão procurada segurança. Talvez os paraísos celestes sejam afinal possíveis, já que os terrestres são impraticáveis. Mas apenas talvez. Os caminhos que caracterizam o destino de um homem são sempre inescrutáveis. Qualquer afirmação sobre eles é temerária. No fundo, resta apenas o mistério ante a fatalidade. E o resto, como disse Hamlet, o resto é silêncio.   


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