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Verso e prosa: a literatura e seus reflexos

Por: Adonay Moreira
Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão e autor de cinco livros, entre poesia e prosa: Sentimentos (poesia/2011), Poemas (poesia/2012), O Livro dos Poemas Invisíveis (poesia/2015), O Labirinto (prosa/2015) e Sobre Luzes e Sombras (poesia/2017). Foi ganhador, em 2013, do 35º Concurso Literário Cidade de São Luís, com a novela O Labirinto. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT) da UFMA.


O Poeta da Morte


Data: 09/08/2020 13:26
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"Hemingway, esse homem de vitalidade enorme, é especificamente o escritor, quase, eu diria, o poeta da morte". 

Otto Maria Carpeaux

Divulgação

Todos os caminhos levam um homem em direção ao seu fatal destino. Essas trilhas, como pegadas no deserto, desaparecem com uma assombrosa velocidade, o que exige de qualquer caminhante uma paciência e uma atenção constantes. Porém todo esse esforço é compreendido quando, ao fim de sua jornada, esse solitário andarilho encontra-se com o único fim para o qual poderia e deveria se direcionar. Toda e qualquer possibilidade contrária não seria senão devaneio, sonho, delírio de um corpo exausto e de um espírito hesitante entre tantos fantasmas que, tal como as sombrias figuras do Inferno de Dante, não podem provocar na alma de um homem a não ser uma tendência a se afastar de seu natural destino. Seguir em frente sem jamais desanimar talvez seja o desafio mais exigente e árduo imposto a qualquer indivíduo. Muitos vacilam, é verdade, apavorados ante as exigências que lhe são antepostas. Porém aqueles que resistem, que seguem com perseverança, conquistando cada passo com o mesmo êxtase de uma divindade em transe, esses cavaleiros do espírito, de alguma forma, fornecem à humanidade um exemplo notável de como a vida de um homem marcha lentamente a seu fim, ainda que o principal protagonista dessa história ignore completamente essa secreta e negligenciada verdade que, desde Édipo, paira como uma sombra acima de nossas cabeças. Há exemplos notáveis de tal marcha nos tempos modernos. Porém nenhum artista representou tão bem esse velho espetáculo quanto Ernest Hemingway, cuja vida espalhou-se por vários caminhos, como caudalosos rios à procura de um mar alternativo, mas todos não tiveram como fim senão o mesmo e já aguardado caminho. 

Hemingway seguiu atento às diáfanas pegadas na areia de seu tão particular deserto, no qual qualquer esforço precipitado de fuga não produziria senão um fantasmagórico eco, que o arrastaria para longe. Esse homem primitivo de Oak Park, ao contrário do que poderia à primeira vista parecer, não constitui um ponto isolado em seu século, nem é um ser de todo estranho à natureza de seu país. Assim como ele, o francês André Malraux também praticava esse estilo de vida que oscila entre a necessidade da tragédia e uma profunda piedade do tão malfadado gênero humano. E não é mera coincidência que o autor de “A Condição Humana” e “Os Conquistadores” tenha sido uma espécie de modelo para homens como Albert Camus e Jean-Paul Sartre, ambos igualmente preocupados com o drama humano em meio ao grande terror que se abateu sobre o seu século, e, ao mesmo tempo, profundos pensadores do vazio existencial de sua época. E, no que tange ao seu país, Hemingway é o produto natural de um povo para o qual a realidade cotidiana supera a própria metafísica, caso esta não lhe ofereça algum resultado útil e prático, como nos provam William James e seu tão controverso pragmatismo. De fato, como queria Ortega y Gasset, “o homem é o homem e a sua circunstância”. Tal foi, ao que parece, o caso de Ernest Hemingway, com uma fundamental e por vezes negligenciada diferença: esse espírito solitário não tinha suas raízes fincadas nos Estados Unidos da América. Sua alma, tal como lucidamente apontou Carpeaux, pertencia ao velho continente, à velha Europa, onde se ambientariam alguns de seus romances mais importantes, como “O Sol Também se Levanta”, “Adeus às Armas” e “Por Quem os Sinos Dobram”, além de ter sido em uma cidade europeia, a velha Paris de Victor Hugo e Baudelaire, na qual ele desenvolveu grande parte de sua educação artística, que será posteriormente lembrada, não sem um certo ressentimento, ao final de sua atribulada vida, no livrinho póstumo “Paris é Uma Festa”.    

Seu niilismo não é nada particularmente original. O século XIX já havia conhecido as poderosas investidas de Nietzsche e Dostoiévski contra o velho mundo criado pela filosofia grega e pela sabedoria judaica, e foi mesmo um judeu, Franz Kafka, quem iniciou o vasto catálogo de alegorias que tem como centro a falta de sentido e o absurdo da realidade de uma Europa em frangalhos. Muito antes de Camus elevar o absurdo à categoria de conceito filosófico, André Malraux já registrava esse sentimento de vazio que, como uma sombra, cobriria toda a intelectualidade europeia. Em seu romance “Os Conquistadores”, Malraux, através de uma carta de seu personagem Pedro, é taxativo:

“‘Não tenho a sociedade por má, por susceptível de ser melhorada; julgo-a absurda. É coisa bem diversa. [...] Há uma paixão mais profunda do que as outras, uma paixão para a qual os objetos a conquistar nada valem. Uma paixão perfeitamente das mais desesperadas – um dos mais poderosos sustentáculos da força’”.

E, mais adiante, Malraux revela algo que aqui é particularmente interessante:

“Sei que a essa ideia está ligado o próprio sentido de sua vida, que é dessa sensação profunda de absurdo que retira a força: se o mundo não é feito de absurdo, é toda sua vida que se dispersa em gestos vãos, não dessa vaidade essencial que, no fundo, o exalta, mas de uma vaidade desesperada. Daí a necessidade que tem de impor seu pensamento”.

Essa “vaidade desesperada” define de modo exemplar toda a vida de Hemingway, de quem Malraux foi contemporâneo, e, por extensão, representa grande parte da intelectualidade europeia da primeira metade do século XX, artistas e pensadores herdeiros de uma época que começa a desabar e que chegaria ao ápice de sua ruína com o advento da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. Nenhum homem passa incólume pelo terror. Mesmo os espíritos mais poderosos carregam suas cicatrizes. E, para fugir aos seus fantasmas, cada indivíduo ergue ao redor de si um vasto castelo invisível, no qual passa a habitar, alimentando a ilusão de que, ali, estará enfim a salvo de seu próprio destino. Hemingway também construiu o seu e, antes da figura de grande escritor, a primeira imagem que o mundo associava a esse Golias americano era a do exímio caçador, do amante da pescaria a bordo do seu Pilar, do mulherengo beberrão e, sobretudo, do homem fascinado por aventuras e pela tragicidade da guerra, sendo que esta última estaria presente em sua obra de forma marcante, levando Otto Maria Carpeaux a considerá-lo “o poeta da morte”.  

A definição não é exagerada. Hemingway amou a morte e, talvez por pressentir que a ela estaria precocemente condenado, a retratou em quase todos os seus livros, em uma espécie de fracassado exorcismo. Desde Édipo, nunca antes um homem foi tão marcado por seu destino quanto o romancista de Oak Park. E, em sua fuga, apelou aos tipos mais estranhos e extravagantes, em uma tentativa implacável de escapar do que o esperava. Isso parece contraditório quando se conhece a sua biografia, na qual é visível um flerte constante com a morte, inaugurado pela primeira vez quando, ainda muito jovem, com menos de 20 anos de idade, alista-se para servir como motorista de ambulância durante a Primeira Guerra Mundial, na Itália – experiência essa que lhe fornecerá o material para escrever o admirável “Adeus às Armas”, publicado em 1929, o segundo de seus romances mais notáveis, no qual o jovem e também inexperiente Frederic Henry tenta viver, ao lado de Catherine Barkley, uma história de amor, cujo fim não é senão a tragédia. E a explicação para isso é simples: em um mundo de completo horror, o amor é extremamente preciso, mas simplesmente impraticável.

Entanto, todas as suas extravagantes aventuras, algumas de fato quase fatais, como os acidentes de avião que sofreu na África em 1954, mesmo ano em que foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, todas essas inquietações foram apenas um lamentável ensaio para a sua morte, que viria através de suas próprias mãos, em uma calma manhã de julho, pois a tragédia, tal como queria o mundo clássico, não aceita finais felizes, ela é silenciosa e avassaladora e, como nos ensinou Édipo, em um dia qualquer rouba ao homem todas as suas glórias e alegrias em questão de segundos. O autêntico Hemingway não se encontra nesses caricatos tipos por ele criados. É certo que o caçador, o mulherengo, o pugilista, o beberrão, o pescador, o aventureiro, todos esses personagens são reais, e é inegável que ele tenha vivido boas experiências com todos eles. Entanto, como afirmava o velho Bruxo do Cosme Velho, um homem pode trocar de roupa sem trocar de pele. E todos esses personagens não são, senão, parte de seu vestuário espiritual. O verdadeiro homem por trás de tantas máscaras é um indivíduo solitário, profundamente marcado pela consciência de seu tempo e com um senso clássico que, de alguma forma, o aproxima de um certo romantismo tardio e algo saudosista. Todos os seus grandes livros são apaixonados monólogos nos quais apenas aparentemente convivem soldados, pescadores, repórteres e belas mulheres. "Quién habla solo espera hablar a Dios un dia", afirmou certa vez o poeta espanhol Antonio Machado. Hemingway não parece ser tão diferente. 

Ao contrário do que possa parecer, todos os seus personagens experimentam uma implacável solidão, ainda que estejam em campos de batalha, em alguma tourada ou caçando livremente pelas savanas africanas. Apenas em “O Velho e o Mar” essa solidão se faz visível, porém aquele triste exílio protagonizado pelo velho Santiago em meio à grandeza marítima já estava presente em Jake Barnes e Brett Ashley, de “O Sol Também se Levanta”; no jovem Frederic Henry e na bela Catherine Barkley, de “Adeus às Armas”; naqueles guerrilheiros escondidos entre as florestas da Espanha, dos quais Robert Jordan, Maria, Pilar e Pablo são exemplos notáveis, presentes em “Por Quem os Sinos Dobram”; estava no jovem e alegre Paco, personagem do conto “A Capital do Mundo”, reunido no volume “As Neves de Kilimanjaro”, e em muitos de seus personagens, até que por fim se deixou captar na triste novelinha de Santiago. Nenhum outro autor seu contemporâneo conseguiu exprimir tão bem essa espécie de solidão povoada como o sempre acompanhado Ernest Hemingway, aquele mesmo jovem irrequieto que, aos 17 anos de idade, começava sua carreira de repórter em um dos mais importantes jornais dos Estados Unidos, o Kansas City Star. E não deixa de haver em tudo isso uma grotesca ironia. 

Guardadas as devidas proporções, não seria exagero reconhecer no eterno rapazinho do Middle West americano aquele mesmo espírito incompreendido e aquela mesma paixão pelo destino, por mais fatal que ele seja, sobre os quais escreveu Sören Kierkegaard em “Temor e Tremor”, ao descrever o que ele designava por “o cavaleiro da fé”. Entanto, o deus de Hemingway não é o Deus do não menos desafortunado teólogo dinamarquês, ainda que as duas divindades exijam a mais íntima fidelidade. Hemingway exibiu essa fidelidade não apenas em sua própria vida. Ele a semeou em toda a sua obra, e não é raro encontrarmos nos lábios de seus personagens frases que, sem nenhum prejuízo, poderiam ter sido pronunciadas por sua própria boca. Assim é uma das confissões de Robert Jordan, o protagonista da mais moral de suas obras célebres, “Por Quem os Sinos Dobram”, em um de seus monólogos mais intensos:  

“[...] Você tem isso agora e isto será toda a sua vida: um agora. Não há nada mais. Não há o ontem, certamente não haverá o amanhã. Quanto tempo terá de viver para aprender? Existe somente o agora, e, se agora é apenas dois dias, então dois dias são a sua vida e tudo o mais será uma proporção disso. É assim que se vive uma vida em dois dias. Será uma boa vida se parar de reclamar e pedir o que nunca terá. Uma boa vida não se mede em períodos bíblicos”. 

A reflexão é válida, porém nem Robert Jordan nem Hemingway a seguiram. 

Foi Ítalo Calvino, um confesso entusiasta do romancista do Oak Park, um dos que melhor definiram o drama dos personagens do grande autor norte-americano. Em seu belo “Hemingway e nós”, reunido no volume “Por que Ler os Clássicos”, afirma ele:    

“O herói de Hemingway quer identificar-se com as ações que executa, ser ele mesmo na soma de seus gestos, na adesão a uma técnica manual ou pelo menos prática, trata de não ter outro problema, outro empenho além de saber fazer bem uma coisa: pescar bem, caçar, explodir uma ponte, assistir a uma corrida como deve ser, inclusive fazer amor bem. Mas ao redor, sempre, existe algo de que quer fugir, um sentido de inutilidade de tudo, de desespero, de derrota, de morte. Concentra-se na estrita observância de seu código, daquelas regras desportivas que em todos os lugares ele sente necessidade de impor a si com o empenho de regras morais, tanto numa luta contra um tubarão quanto numa posição assediada por falangistas. Aferra-se àquilo, pois fora daquilo existe o vácuo, a morte”.

E era justamente da morte que ele tanto se evadia e, quanto mais dela se afastava, mais a ela estava ligado. Um homem sempre segue seu destino. Com Hemingway não foi diferente. Seu suicídio foi mais uma das grandes tragédias que tiveram o século XX como cenário. Se de fato crermos na célebre meditação de John Donne, que Hemingway utilizou como epígrafe a “Por Quem os Sinos Dobram”, não nos custa acreditar que, com seu fim, o grande aventureiro também feriu de morte uma parte considerável de nossa existência, arrastando-nos consigo, naquela triste manhã de 02 de julho de 1961, para o mais frio dos lagos. Sua obra, entanto, permanece atual e viva, e seu exemplo de força e coragem ainda constitui um modelo plausível a ser seguido. Como confessa o velho pescador Santiago em “O Velho e o Mar”: “Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado”. Essa prodigiosa frase encerra não apenas uma grande ideia. Ela é, sobretudo, uma síntese da própria vida do romancista, e representa, de igual forma, o fechamento de um ciclo, pois há um fio invisível que a une àquela outra grandiosa ideia que dá nome ao seu primeiro grande sucesso, o romance “O Sol Também se Levanta”, título esse retirado do Eclesiastes (1, 4-7):  “Uma geração passa, e outra geração lhe sucede: mas a terra permanece sempre firme. O sol nasce, e se põe, e torna ao lugar de onde partiu: e renascendo aí, faz o seu giro pelo meio-dia, e depois se dobra para o norte”, e que exprime a eterna repetição e mudança das coisas ante a perenidade do mundo, que permanece e segue em frente, indiferente às criaturas que sobre ele vagam. É uma poderosa meditação para um século cuja crença total no niilismo levou aos absurdos mais terríveis. E, se o grande romancista celebrizou-se apoiado sobre a velha sabedoria judaica, a perturbadora sentença de Santiago marca o seu fim como escritor, pois, após essa breve e magnífica novela, o famoso autor de Oak Park jamais voltaria a escrever algo que possuísse a mesma força daquela empolgante batalha entre o homem e a natureza. Era a derrota que já se aproximava, e Hemingway destruiu-se antes que ela sobre ele se abatesse. Seu trágico destino concluiu-se. A beleza tem seu preço. No caso de Hemingway, foi o mais caro de todos: a morte. 

Como vaticinou o Corifeu na memorável história de Édipo: “Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida”. Será sempre uma incógnita saber se Hemingway de fato foi feliz. Em todo caso, é essa uma mensagem que deve ser levada em consideração. Por ora, apenas os sinos mais uma vez dobram diante do fim desse que foi o mais trágico de seus contemporâneos. De fato, John Donne estava correto: nenhum homem é uma ilha, e não é sem espanto que descobrimos que os mesmos sinos que choraram e ainda choram a morte de Ernest Hemingway também dobram por nós. 


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