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Verso e prosa: a literatura e seus reflexos

Por: Adonay Moreira
Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão e autor de cinco livros, entre poesia e prosa: Sentimentos (poesia/2011), Poemas (poesia/2012), O Livro dos Poemas Invisíveis (poesia/2015), O Labirinto (prosa/2015) e Sobre Luzes e Sombras (poesia/2017). Foi ganhador, em 2013, do 35º Concurso Literário Cidade de São Luís, com a novela O Labirinto. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT) da UFMA.


A disciplina do olhar


Data: 12/07/2020 08:58
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Reprodução

Auguste Rodin foi apresentado ao mundo alemão pelas habilidosas mãos de Georg Simmel, que, em uma exposição em Praga, durante uma viagem no verão de 1902, ficara maravilhado pelas esculturas do mestre francês. Até então, Rodin não passava de um célebre desconhecido entre os germânicos, e seu nome, que depois haveria de assombrar e encantar o mundo, não despertava na alma dos bons alemães um interesse maior do que as leituras de Goethe, o consumo de cerveja e o processo de fabricação de salsicha conseguiam despertar. As impressões de Simmel acerca do então ignorado artista são pontuais e ele as reuniu em um ensaio de ocasião, denominado “A escultura de Rodin e a direção espiritual do presente”, publicado em 29 de setembro de 1902. Nele, podemos ler trechos luminosos, como:   

“Mas se a história de uma arte é o desenvolvimento de novas formas de estilo, em vez de sua repetição, então a história da escultura, que havia terminado com Michelangelo, recomeça com Rodin. Rodin perfez a primeira mudança de princípios, abandonando o esquema da antiguidade em direção a um novo estilo. O naturalismo, que na escultura houvera se aventurado menos que nas outras artes – e em verdade apenas nos países latinos – ambicionava a mesma libertação. Mas ela era a libertação do escravo que quebra a corrente, e não aquela que acontece em virtude de um novo ordenamento”.

O entusiasmo do grande sociólogo alemão pela obra de Rodin é mais do que compreensível. Como poucos artistas do século passado, o escultor francês foi capaz de cristalizar em suas modernas criações a alma daquele velho mundo europeu que, desde Michelangelo e Donatello, poderia ser vista esculpida em mármore, bronze ou pedra. Como Eliot, Rodin uniu ao tão conhecido estilo classicista a grandeza de um novo estilo, dando ao seu trabalho, a um só tempo, o sentido da ruptura e da continuidade. Qualquer uma de suas magistrais criações dão prova disso: desde sua monumental “A idade do bronze”, dedicada a Michelangelo,  a “O beijo”; da “Porta do inferno” a “Os burgueses de Calais”; de seu célebre “O pensador” àquele miserável “São João Batista Pregando”, cujos tormentos parecem saltar aos olhos do espectador, qualquer um desses trabalhos serve como exemplo da força de sua arte, jamais superada por nenhum outro escultor em seu século. 

O impacto de sua presença no mundo cultural alemão foi imediato e teve grande repercussão. Mas nenhum artista o sentiu com mais força e verdade do que Rainer Maria Rilke, cuja obra, em contato com o mestre francês, ganharia outro sentido e o possibilitaria ser, como bem o caracterizou Otto Maria Carpeaux, “o poeta mais atual e permanente do nosso tempo”. É bem verdade que a sua obra anterior à influência de Rodin já dava sinais de suas inegáveis qualidades como poeta, ainda que se possa sentir nos versos dessa época uma certa procura desorientada, uma ânsia de maturidade e consciência que somente um artista autêntico é capaz de possuir e professar. Há abismos que somente o tempo consegue corrigir e conter, condenando o infeliz que os carrega a uma existência angustiada e miserável, à qual é preciso aliar paciência, trabalho e estudo, sob pena desse condenado viver eternamente sob o jugo de sua própria desgraça e solidão. Esse talvez seria o destino do célebre poeta de Praga caso sua alma, que nos dá a impressão de ter sempre vivido em uma eterna combustão, não tivesse encontrado em seu caminho o escultor de Meudon.

Seu “O livro das horas”, publicado em 1905, já havia causado boa impressão à época, e nele já podemos ver o que havia de força, solidão e procura no futuro autor dos “Sonetos a Orfeu”. Em sua primeira parte, lemos, na tradução espanhola de Federico Bermúdez-Cañete (1999), versos como:

“Vivo mi vida en círculos crecientes,

que encima de las cosas se dibujan. 

El último quizá no lo complete  

pero quiero intentarlo.

Giro en torno de Dios, de la torre antiquíssima, 

durante miles de años voy girando. 

Todavía no sé: ¿soy halcón, soy tormenta, 

o bien soy un gran cántico?”. 

Entanto, é inegável que, depois de seu contato com o artista francês, sua obra ganharia um outro sentido, e se aperfeiçoaria com a influência que posteriormente sofreria da pintura de Paul Cézanne, por cujas obras nutriria uma verdadeira devoção. Rilke foi secretário de Rodin entre 1905 e 1906 e, por mais que depois viesse a romper com seu mestre, a presença do grande escultor foi-lhe determinante, levando-o a escrever uma monografia sobre seu trabalho, intitulada “Auguste Rodin”. Em seu texto, Rilke deixa mais do que evidente como a imagem do velho mestre causou-lhe um impacto tão profundo que alteraria para sempre seu modo de conceber e pensar a sua própria arte. Essa presença fica visível na dedicatória que o poeta lhe faz quando publica os “Novos poemas” (1908), aqui na tradução de Mariana Marchi Bazan (2018):

“Meus mais finos esforços estão em uma língua que não é a sua. Eu estou te oferecendo um livro que você não pode ler. Ao inscrever seu glorioso nome nele, estou reconhecendo que seu imenso exemplo contribuiu enormemente com a minha educação para produzir um trabalho intenso e sincero”.

Esse contato foi avassalador. Com Rodin, cujo trabalho o poeta teve a oportunidade de acompanhar na intimidade, Rilke despertou seu olhar para o mundo e para a materialidade das coisas, deixando-as se apresentar aos seus sentidos como puros seres existentes, repletos de vida e de significado. Esse mergulho no íntimo dos objetos, tal qual praticava Rodin, significou um divisor de águas na poesia rilkeana: agora, o mundo lhe exigia um olhar atento, paciente e sincero, com o qual seria capaz de alcançar a essência dos seres ao seu redor. Como as estátuas do mestre francês, que pareciam emergir de seu longo sono no interior dos minérios, a poesia do grande alemão agora se guiaria através de uma concentração total nos objetos e seres, em um profundo diálogo entre o artista e o mundo. Não é em vão que dessa época provenha um de seus textos mais célebres, que exemplifica de modo cabal o novo rumo trilhado por sua poesia. Trata-se do poema “Torso arcaico de Apolo”, presente no volume “Novos poemas” (1908), cuja tradução de Manuel Bandeira torna ainda mais magistral: 

“Não sabemos como era a cabeça, que falta,

De pupilas amadurecidas, porém

O torso arde ainda como um candelabro e tem,

Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

E brilha. Se não fosse assim, a curva rara

Do peito não deslumbraria, nem achar

Caminho poderia um sorriso e baixar

Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera

Pedra, um desfigurado mármore, e nem já

Resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida

Como uma estrela; pois ali ponto não há

Que não te mire. Força é mudares de vida”.

Não há um só detalhe que escape à análise dessa paciente e ardilosa águia, para a qual o mundo converteu-se em um imenso jardim animado, no qual todos os seres e coisas possuem voz e clamam a um só tempo atenção e silêncio. A criação implicaria, assim, um ato de extrema concentração. É preciso ver, ver e ver, estar atento ao mundo para que este então, já íntimo, revele-se e forneça ao artista todos os prodígios necessários à criação. Rilke professaria até o fim de sua vida esse verdadeiro credo, cujos dogmas deixou registrado em seus trabalhos mais importantes. Em “Os cadernos de Malte Laurids Brigge” (1910), seu único romance, notadamente de cunho autobiográfico, o poeta de Praga confessa a impressão deixada por seus anos em Paris, nos quais, após o contato com Rodin e Paul Cézanne, sua poesia se alteraria definitivamente: 

“É para cá, então, que as pessoas vêm para viver; eu diria, antes, que aqui se morre. Estive fora. Eis o que vi: hospitais. Vi um homem que cambaleou e caiu. As pessoas se aglomeraram em torno dele, o que me poupou do resto. Vi uma mulher grávida. Ela se arrastava pesadamente ao longo de um muro alto e quente, que apalpava vez por outra como que para se convencer de que ainda estava ali. Sim, ainda estava”.

Há em tudo isso o mesmo espanto de uma criança que, ao contato com o mundo, assombra-se com a estranha e familiar existência das coisas. E não é para menos. Desde Platão, o ato de ver implica necessariamente o ato de pensar, e não é senão um produto do olhar o nascimento da reflexão filosófica, como nos ensinou o sábio grego nos livros V e VII de sua “República”. E esse ensinamento, colhido no distante ateliê de Rodin, Rilke interiorizaria em sua vida, a ponto de constituir o guia de todo o seu trabalho posterior. Mesmo em suas criações mais místicas, o poeta alemão não abandonou esse princípio, cuja força ainda notamos em “As elegias de Duíno” (1923), notadamente na quarta: 

“Não quero essas máscaras ocas, prefiro

o boneco de corpo cheio. Susterei

o títere, os cordéis e o rosto

feito de aparência. Estou aqui, à espera. 

Ainda que as lâmpadas se apaguem, ainda

que me digam: ‘acabou-se’ – ainda que do palco

se evole o vácuo na corrente de ar cinzento, 

ainda que os antepassados silenciosos

não estejam ao meu lado, nem mulher, nem mesmo

a criança de olhos castanhos e estrábicos –, 

ficarei à espera. Sempre há o que ver.”

E, ao que parece, sua espera foi recompensada. Poucas obras se erguem do solo da literatura ocidental com tanta força e vigor como a sua, e somente um artista do porte de Eliot, Pessoa ou Borges poderia, no século XX, rivalizar com seu imponente castelo, erguido sob o mais singelo e penetrante olhar. Rilke abre-nos a percepção para o mundo. É preciso que o artista consiga ver, que não corrompa a realidade ao seu redor com seu subjetivismo, que entenda que cada simples ser, cada mínimo objeto possui uma mensagem e que a função do artista consiste apenas em ouvi-la e torná-la visível aos olhos e ouvidos menos atentos. Ao lado de Tchekhov, outro mestre da atenção, Rilke direcionou todo o seu esforço a uma paciente e serena observação, a qual não poderia ter como finalidade senão o silêncio e a concentração do trabalho. Como confessa em suas famosas “Cartas sobre Cézanne” (1907), na tradução espanhola de Andrea Pagni (1978): “Todo comentario es un malentendido. La verdadeira comprensión sólo existe en el trabajo”. 

Essa é uma afirmação cara ao nosso tempo, para o qual a atenção, o silêncio e a meditação são apenas meros e odiosos fantasmas, eclipsados pela verborragia e pela pseudoerudição, cujo resultado não é, senão, uma pomposa barbárie. Entanto, esperemos que as palavras do mestre de Praga consigam cavar fundo em algum espírito, pois sempre há tempo, sempre há tempo, e, como por ele nos foi ensinado, força é mudarmos de vida. 


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