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Verso e prosa: a literatura e seus reflexos

Por: Adonay Moreira
Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão e autor de cinco livros, entre poesia e prosa: Sentimentos (poesia/2011), Poemas (poesia/2012), O Livro dos Poemas Invisíveis (poesia/2015), O Labirinto (prosa/2015) e Sobre Luzes e Sombras (poesia/2017). Foi ganhador, em 2013, do 35º Concurso Literário Cidade de São Luís, com a novela O Labirinto. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT) da UFMA.


Jonas, o pintor


Data: 28/06/2020 09:19
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Reprodução

Gilbert Jonas nem de longe é o mais célebre personagem da obra de Albert Camus. Diante de criações extraordinárias como Bernard Rieux, de “A Peste”, Meursault, de “O Estrangeiro” e Clamence, de “A Queda”, o pobre Jonas é tão somente um triste e obscuro fantoche, condenado a viver eternamente entre as frias páginas de um livro, entre as quais não pode ver senão sua própria imagem e ouvir senão a sua própria voz. Mesmo personagens menos conhecidos como Jan de “O Mal-Entendido", Stepan de “Os Justos” e o não menos admirável Calígula, da peça homônima, conseguem sobrepor-se a esse pequenino representante da arte de Rafael e Cézanne. A fama não lhe foi a mais fiel das suas estrelas, nem o entusiasmo que chegou a despertar em seus leitores e críticos foi maior do que aquele que comumente se poderia esperar de um personagem aprisionado no único volume de contos de um autor cuja celebridade foi obtida através dos palcos, do romance e do ensaio. É comum que se louve o Camus de “O Mito de Sísifo”, de “O Homem Revoltado” e de “O Estrangeiro” ou mesmo que se lamente a morte precoce de um romancista que, em sua viagem rumo à morte, carregava entre seus pertences os originais de um romance como “O Primeiro Homem”, cujo personagem central, o bom e angustiado Jacques Cormery, já sinalizava para o fato de que o incansável franco-argelino agora voltaria seu olhar para o passado e, como Proust, tentaria recompor sua vida através de sonhos, imaginação e memória. A esse Camus, que amava o mar e o sol, todos os louvores são dispensados. Nenhuma palavra, entanto, é mencionada no caso do miserável Jonas.    

O anonimato tem suas vantagens, é certo, e talvez a maior proeza desse eclipsado artista resida exatamente em todo o potencial que ainda consegue trazer à luz, como uma pequena descoberta arqueológica ou um tesouro ao mesmo tempo familiar e esquecido, que, por negligência e excesso de entusiasmo por interesses menores, acabamos por esquecer dentro dos porões ou arremessamos para algum canto obscuro da casa. Mas o sol brilha para todos. E não seria diferente no caso do desafortunado pintor. 

“Jonas ou o artista trabalhando” é a penúltima história da obra “O Exílio e o Reino”, publicada pela primeira vez em 1957 e única reunião de contos de Albert Camus, sendo também, por um desses infelizes lances do destino, sua última obra de ficção lançada em vida, antes que, três anos depois, a morte o encontrasse naquela fatídica viagem abordo de um Facel Vega, com destino a Paris, silenciando para sempre essa que foi uma das vozes mais lúcidas e violentamente apaixonadas de toda a Europa no século XX. O aparecimento desse volume coincide com uma série de acontecimentos felizes na vida de Camus, sendo o mais notório deles a conquista do Prêmio Nobel de Literatura. Mas nem mesmo toda essa atmosfera de luz e contentamento conseguiu despertar Jonas de seu longo e paciente sono. Assim como acontece aos astros, foi preciso que as grandes e luminosas criações de Camus deixassem de emitir tanta luz para que a estrela de Jonas começasse a brilhar. E agora, com os olhos mais limpos e a alma menos irrequieta, seus leitores podem contemplar o que por muito tempo permaneceu sendo apenas um segredo quase particular, um longo e angustiado monólogo desse amante das tintas, dos cavaletes e dos pincéis.  

Gilbert Jonas não é, certamente, um personagem extraordinário, nem muito menos uma criação medíocre. Poderíamos dizer dele o mesmo que Paul Johnson afirmou acerca do autor de “Emílio”: um louco interessante. Entanto, essa aparente loucura nem de longe depõe contra ele. Há gênios escondidos sob as faces mais caricatas e superficialmente ultrajantes e ignominiosas. Poucos homens são tão inteligentes e rapaces quanto os bobos de Shakespeare ou os inocentes e ingênuos de Voltaire, cujas virtudes certamente lhes garantiriam um dos lugares mais honrosos no inferno. Jonas tampouco é um santo leigo como o príncipe Míchkin, de “O idiota” de Dostoiévski ou um desvairado romântico como o Werther, de Goethe. Certos comportamentos e traços seus lembram-nos, antes, aquele assombroso indiferentismo de Bartleby, de Melville, e, por vezes, aquela espécie de humilhação consentida e personalidade impotente que não raro encontramos nos contos de Tchekhov, entre os quais Iona Potapov, de “Angústia”, e Ivan Dmítritch Tcherviakov, de “A Morte do Funcionário”, são alguns dos exemplares mais notáveis. 

A vida desse ignorado Caravaggio é tão banal como a de qualquer outro homem de seu século: filho de pais em permanente conflito, devido ao individualismo de seu progenitor e ao ar excessivamente devoto de sua mãe, Jonas descobre a pintura por acaso, como de resto tudo em sua vida. Não estaria enganado quem notasse nele alguma espécie de sobrevivência de Meursault e seu célebre “tanto faz”, com a esmagadora diferença de que Jonas tem um maior apreço pela vida e dedica-se com alguma constância à sua esposa e filhos. Ainda que tivesse algum talento, o bom Gilbert era acometido por uma apatia colossal, que o impossibilitava qualquer esforço e disciplina, contentando-se de forma vergonhosa com sua ignorância e nutrindo uma crença despropositada em sua “estrela”, tornando a lenta marcha de seus dias um obstáculo tortuoso, difícil e sem qualquer resultado. 

Ao contrário do que à primeira vista possamos ser levados a crer, Camus não quis nos dar com esse personagem apenas alguns instantes divertidos na companhia de um pintor de paisagens e aquarelas. Como testemunha toda a sua obra, ele sabia que há em toda literatura um sentido profundo, que, ainda que não seja imediatamente detectado, é preciso que busquemos e consigamos captar, como uma distante mensagem que nos é transmitida dentro de uma garrafa, que enfrenta todas as tempestades e tormentas e chega-nos intacta. Como aquele outro Jonas, o hebreu, que declinou de sua missão divina, há no destino do esquecido Gilbert um abismo muito maior do que conseguimos, em uma breve leitura, detectar, e não é uma mera coincidência o fato de que Camus tenha colocado como epígrafe a esse conto uma frase retirada do livro de Jonas, o desafortunado filho de Amati, cuja história nos é apresentada no Antigo Testamento. 

“Levanta-te, e vai à grande cidade de Nínive, e prega nela: porque a sua malícia subiu até à minha presença”. Com essas palavras ordena Deus que Jonas alerte os desgraçados habitantes de Nínive, cujas vidas estavam ameaçadas pela cólera divina. Jonas, entanto, hesita em fazê-lo e prefere antes fugir da face de seu Deus. Como castigo, foi engolido por um grande peixe e só então, arrependido, clama piedade ao Deus dos hebreus, que ordena à criatura marinha que o liberte, e somente após tais infortúnios cumpre ele a vontade do Senhor.   

Gilbert, porém, ao contrário do hebreu do relato bíblico, não chega a ser um mensageiro de Deus, ainda que seu criador, no final de sua curta vida, tenha procurado na fé alguma resposta para o grande absurdo que lhe era a vida. Como nos conta o reverendo metodista Howard Mumma: “Como eu poderia auxiliá-lo a achar as respostas que ele buscava ardentemente? Enquanto eu o observava, percebi que havia nele mais do que curiosidade intelectual. Ele queria mais do que uma compreensão da fé. Ele queria experimentar essa fé, e tê-la agindo em sua vida”. As palavras de Mumma podem conter algum exagero, por certo. Porém impressiona-nos que tal fato tenha ocorrido na década de 1950, quando o revendo foi ministro na Igreja Americana de Paris, mantendo nessa época uma série de diálogos com Camus. Em todo caso, é inegável que o filósofo franco-argelino sempre deixou notar em seus textos uma angústia tão profunda, um vazio tão desesperado e uma crença tão inabalável na certeza do absurdo que apenas um devoto autêntico seria capaz de proferir e professar. 

Não admira, portanto, o fato de que entre esses dois personagens, o hebreu e o francês, haja semelhanças muito maiores do que meras coincidências fortuitas, hipótese essa pouco plausível em se tratando de um autor como Albert Camus. Voluntária ou involuntariamente, a vida de Gilbert Jonas encerra uma denúncia. Através do relato de sua desafortunada vida, Camus chama atenção aos perigos aos quais está sujeito um artista quando, em uma entrega ignominiosa, deixa-se levar pela inércia e pelo acaso, aceitando passivamente tudo aquilo que lhe é imposto, seduzido pela glória fácil e pela fama, negligenciando seu talento e sua vocação e assentindo a todos os apelos da hora, rodeado de aduladores e falsos amigos, em um ambiente no qual nada além de inveja e fracasso pode prosperar. Há um momento em que a vida se deixa revelar tal como é, com todas as suas chagas e imperfeições, ainda que se tenha, como no caso de Jonas, uma boa “estrela” e se disponha por algum tempo dos mimos da sorte. Tal é o caso desse desconhecido pintor. A indolência e a atração pelo brilho fácil constituíram o solo de sua tragédia, e já era demasiadamente tarde quando finalmente volta a si. 

“As águas me cercaram até à alma: o abismo me encerrou em si, as ondas do mar me cobriram a cabeça. Eu desci até as extremidades dos montes; os ferrolhos da terra me encerraram para sempre! Tu contudo, Senhor Deus meu, preservarás a minha vida da corrupção”, clama o infeliz hebreu ao seu Senhor, em busca de piedade por ter-se desviado de seu caminho. Gilbert Jonas, porém, só dispõe de sua estrela e esta não é nem de longe tão piedosa, pois nutre-se da chama que ele mesmo lhe fornece, e lhe permite apenas afirmar ao seu amigo Rateau: “Não, não estou certo de existir. Mas vou existir, tenho certeza disso”. Não lhe resta mais nada senão aceitar seu destino, esmagado entre os afazeres cotidianos, o abandono de seus falsos discípulos e a fuga de sua “estrela”, em direção à qual empreende, ainda que tardiamente, uma busca vertiginosa. Porém não há mais o que fazer. Jonas morreu para si mesmo e para sua arte, e o objeto de sua procura não é senão um pálido e distante fantasma. 

A vida de Gilbert Jonas, ainda que curta, constitui um dos relatos mais sinceros e pessoais de Albert Camus, e o fato de que seja um texto não tão comentado por seus leitores e críticos não deixa de chamar atenção. Sendo ele mesmo uma espécie de Jonas que, dotado de uma prodigiosa “estrela”, não descansou um só dia da árdua tarefa de se aperfeiçoar, relegando a um segundo plano tudo que pudesse afastá-lo de seu caminho, Camus imortalizou nesse curioso personagem algumas de suas mais caras convicções: seu credo na consciência da arte, seu amor à solidão, sua piedade irrestrita aos homens e seu profundo sentimento religioso, que, desde seus escritos de juventude, já se faz notar. “E há uma espécie de coragem desesperada na lucidez e na recusa de amar”, afirma ele no texto “Ironia”, presente no volume “O Avesso e o Direito”, publicado quando seu autor contava apenas 22 anos de idade. Talvez ele tenha levado demasiadamente a sério essa coragem, cujo peso já se fazia sentir no fim de sua existência. Seu Jonas lhe proporcionou, a um só tempo, uma divertida e trágica confissão, a última antes do triste fim que o aguardava. 

Será no Evangelho de Mateus que Cristo se referirá a Jonas, o hebreu, como uma espécie de profeta de sua vinda e de sua ressurreição. Camus talvez a isso quisesse se referir quando relatou a história desse diminuto e fracassado Ticiano, e seu romance inconcluso, encontrado entre os destroços do automóvel em que viajava, dá-nos fartos indícios desse caminho. Entanto, jamais saberemos se de fato o que supomos tem lá algum sentido e validade. Como confessou em seu livrinho de 1937: “A grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quanto sobre a morte”. Essa é de fato uma frase profética de um jovem que, anos mais tarde, durante sua exígua vida, cruzaria incólume um dos mais negros séculos do Ocidente sem se deixar corromper pela sedução dos falsos discursos, pela fama ou pela glória, sempre fiel à sua “estrela”, a qual ainda agora reina e brilha. A profecia cumpriu-se. Esperemos agora se, com ela, também se erguerá ante nossos olhos alguma ressurreição. 


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