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Verso e prosa: a literatura e seus reflexos

Por: Adonay Moreira
Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão e autor de cinco livros, entre poesia e prosa: Sentimentos (poesia/2011), Poemas (poesia/2012), O Livro dos Poemas Invisíveis (poesia/2015), O Labirinto (prosa/2015) e Sobre Luzes e Sombras (poesia/2017). Foi ganhador, em 2013, do 35º Concurso Literário Cidade de São Luís, com a novela O Labirinto. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT) da UFMA.


Uma lição de Borges


Data: 14/06/2020 12:33
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Jorge Luís Borges

Borges é um desses autores cuja fama atingiu tal patamar que chega, por vezes, a prescindir de sua obra. Não é incomum notar que muitos dos que sobre ele falam com um ardor de fato apaixonante nos dão a sensação incômoda de que não conhecem, sequer, uma única linha da sua tão fantástica e prodigiosa obra. Talvez o mito e a lenda sejam um destino comum de todo grande artista, como o foi para Dante, Shakespeare ou Kafka, cujos nomes rondam a imaginação de muitos com uma força tal e obedecem aos caprichos mais estravagantes que esses entusiastas corariam caso se dessem ao trabalho de folhear algum de seus livros. 

Borges, entanto, nem por isso deixou de ser um destino. Talvez o mais universal dos latino-americanos, esse homenzinho de estatura mediana, senhor de uma erudição assombrosa e de uma memória que só encontra rival entre seus próprios personagens, que amava com igual paixão os tigres, os espelhos e o Quixote, nem de longe desperta em quem o observa a suspeita da existência, nele, de um mundo tão prodigioso que, em seu contato, chegamos a duvidar das fronteiras entre a realidade e o sonho. 

Um dos últimos artistas de uma era em que a arte contentava-se em encenar seu humilde e eterno papel, o autor de “Ficções”, “História da eternidade” e “O livro de areia” permanece entre nós como um símbolo erigido contra toda possibilidade de decadência e corrupção artística, e sua presença se irradia cada vez mais, como os corredores de seus labirintos ou os muitos reflexos de seus espelhos e punhais. 

Seus textos, construídos com a paciência e a habilidade de um demiurgo, são um capítulo à parte na história da literatura latino-americana, e seu estilo conciso, por vezes poético e irônico, de uma ironia que beira à ingenuidade, é um artefato de tal modo perfeito que ainda continua resistindo à sanha de seus desolados imitadores. Entanto, ao lado do erudito e do fabulador, há um Borges menos difundido, quase secreto, que, como seus mestres, resistiu à sombra e à tragédia e, inabalável, prosseguiu seu caminho, confiante na beleza e em tudo que ela encerra. É sobre esse Borges que gostaríamos de falar.

Sua tragédia é conhecida. Como aconteceu a Beethoven, Pergolesi, Van Gogh, Hemingway, Rimbaud e Heine, o destino foi-lhe implacável, lançando-o em um mundo no qual a noite é a única expressão possível e para o qual os dias converteram-se em um monótono desfile de sombras, no qual o tempo, ainda que não tenha desmentido Demócrito de Abdera, arrastou para o passado todas as suas imagens, congelando-as tal como foram um dia.  

Entanto, a cegueira, que o acompanhou desde a juventude, jamais o impediu de criar. Como todo grande artista, Borges era impelido por uma força muito maior do que seu próprio drama. Sua vida foi um exemplo, ainda que poucas vezes salientado, de como a um artista nada é mais importante e urgente do que a criação e a beleza, ainda que se viva em um mundo no qual a violência, a miséria e o terror imperem. Borges era consciente não só da tragédia e do horror de seu próprio destino, mas também da tragédia e do horror de seu país e da precária condição humana. E tal fato não lhe passou despercebido. Porém sabia de igual modo que o destino dos homens está acima de toda miséria e horror.

Em um mundo assim tão precário, ele nutria a convicção de que a um artista compete apenas seguir trabalhando, sem se deixar levar pelos tumultos do momento nem pelos slogans da hora. A beleza, essa deusa inútil, como a caracterizou Oscar Wilde, constitui o único fim da obra de arte e, sejam quais forem os seus meios ou os objetos sobre os quais se debruce, seu propósito é atingir um encontro com nós mesmos e com a transcendência, ofertando a quem quer que com ela entre em contato um consolo profundo,  que redime a existência humana de seus medos mais secretos, oferecendo uma ponte que nos possibilita reencontrarmo-nos com nós mesmos.  

Fiel leitor de Emerson, Borges talvez com ele tenha aprendido que a felicidade última do mundo, se é que existe, jamais será conseguida em um esforço mágico e pretensamente coletivo rumo a um paraíso inexistente que se pretende alcançar na terra. Muito pelo contrário. É uma tarefa de cada indivíduo a construção paciente, silenciosa e sincera desse mundo pretendido, um mundo que caiba entre as frias paredes da realidade, nas quais, na falta de melhor ornamento, um pequeno vaso com rosas já constitui um prodigioso detalhe. 

Esse credo borgeano, presente na aceitação meditada de seu destino e refletido em muitas de suas obras, poucas vezes foi tão bem esculpido quanto no poema “Elogio da sombra”, sem dúvida alguma um dos mais belos textos de língua espanhola, e que constitui, talvez, a mais sucinta, discreta e fiel das confissões que um artista foi capaz de engendrar. Ao longo de seus versos, Borges nos leva para um caminho sem volta, convertendo-se em uma espécie de Virgílio que, prometendo-nos a imagem procurada da beleza e da divindade, convida-nos a vencer as nossas próprias hesitações e nossos próprios medos. O homem inteiro está ali: sua vida entre livros, seus dias por vezes apaixonadamente monótonos, suas experiências mais triviais e felizes e suas obstinações mais evidentes desfilam diante de nossos olhos sem que, com isso, fiquemos constrangidos ante essa nudez. 

Isso porque, diante dessa imagem assim revelada, percebemos que o que nos une a ela vai muito além de uma experiência estética ou da paciente aprendizagem de uma vida que, ainda que fabulosa, cabe perfeitamente em poucas linhas. O que ali encontramos não é, senão, o nosso próprio destino, descrito pelo punho inconfundível do criador de “O aleph”, “A biblioteca de babel” e “O jardim das veredas que se bifurcam”. Borges nos ensina, em seu poema, que a vida humana, ainda que passiva às desgraças e tragédias, não encontra nesses males o seu objetivo. Ao contrário: o fim último de nossa existência consiste no pleno encontro com nós mesmos, encontro esse só possível após um lento, e por vezes doloroso, percurso. Borges não nos oculta o sofrimento e a miséria inerentes à condição humana. Muito pelo contrário: com a proeza de um prestidigitador, ele nos alerta para esses momentos terríveis, sem, contudo, deixar de nos confessar que, mesmo em meio à desgraça, é preciso calma, prudência e sabedoria. E nos segreda, com uma tocante beleza, a impressão que lhe causa a sua própria noite: 

Esta penumbra é lenta e não dói;

flui por um manso declive

e se parece à eternidade.

Meus amigos não têm rosto,

as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,

as esquinas podem ser outras,

não há letras nas páginas dos livros.

Tudo isso deveria atemorizar-me,

mas é um deleite, um retorno. 

Esse retorno não é, senão, uma marcha contínua rumo à essência de seu próprio mistério, e apenas por tal caminho conseguiremos um dia ser felizes. Tal percurso não é, de forma alguma, uma inovação borgeana. Esse portenho genial e tímido sabia perfeitamente que a originalidade é, talvez, a mais antiga das superstições. Desde o Édipo de Sófocles, a crença de que apenas após a morte saberemos se fomos felizes foi uma constante no mundo ocidental, e Borges, ao nos sugerir tal crença, não faz senão tornar-se mais um elo poderoso nessa corrente, um elo que, sobretudo para o nosso tempo, nunca foi tão necessário e urgente. Esta é, talvez, a maior lição de Borges: lembrar-nos que a esperança jamais deve ausentar-se da vida humana, seja em que época for, e que são nos momentos mais difíceis e dramáticos que tal chama deve brilhar, ainda que ao nosso redor, como aconteceu ao bom argentino, reine uma noite perversamente negra, que tenta nos convencer, com os artifícios mais sutis e ardilosos, que a luz da manhã é uma crença vã e inútil, afogando-nos em nosso próprio medo e exilando-nos de nossa própria identidade.

Borges conclui seu poema de forma simples:

Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,

a minha álgebra e minha chave,

a meu espelho.

Breve saberei quem sou.

Seus versos são claros e precisos, não deixam margem à dúvida ou à ambiguidade. Sua lição foi confessada e proferida. Caberá a cada um de nós segui-la ou negá-la. Borges, ao que creio, encontrou sua verdadeira face. O que ela significa, entretanto, apenas ele seria capaz de responder. Resta-nos apenas percorrer essa viagem e, assim como ele, mesmo após as trevas, procurarmo-nos a nós mesmos. Assim, talvez em breve também saibamos quem de fato somos.        


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