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Verso e prosa: a literatura e seus reflexos

Por: Adonay Moreira
Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão e autor de cinco livros, entre poesia e prosa: Sentimentos (poesia/2011), Poemas (poesia/2012), O Livro dos Poemas Invisíveis (poesia/2015), O Labirinto (prosa/2015) e Sobre Luzes e Sombras (poesia/2017). Foi ganhador, em 2013, do 35º Concurso Literário Cidade de São Luís, com a novela O Labirinto. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT) da UFMA.


Um elogio do amor


Data: 12/06/2020 08:16
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Ilustrativa

A ideia de que o amor verdadeiro existe e de que ele é, por si mesmo, um bem que deve ser incansavelmente buscado, redimindo tanto o amante quanto o amado de todas as fraquezas que possam porventura conter e os elevando ao centro de sua própria existência e personalidade, parece ser hoje uma crença inútil e arcaica, digna de pouco crédito e arremessada ao porão das vãs ideias, nas quais não se deve insistir. Como todos os grandes enganos capazes de devastar até mesmo as mentes mais lúcidas e capazes, a convicção de que o amor seja um equívoco profundo, fruto do antiquado mundo de nossos antepassados, o qual, atualmente, é visto como o distante movimento de sombras entre ruínas, encontra hoje, mesmo nos meios mais eruditos e sensíveis, uma ampla aceitação. Nesse jogo em que só participam os corpos, qualquer possibilidade de fuga parece impossível, encerrando a alma humana em um cerco de tal modo cruel que, mesmo despidos e saciados, os corpos, abandonados aos seus próprios vícios, já não se suportam nem se conhecem. Afogados em seu ego, eles esvaziam-se em busca de um objetivo ao redor do qual gravitam toda a sua inteligência e toda a sua sensibilidade e, uma vez em posse dessa glória efêmera, retornam sem rosto à mesma multidão da qual provieram, aguardando, como Don Juan, a próxima oportunidade de se saciar em alguma outra face prometida, com a qual se relacionarão por breves instantes e em seguida partirão, obedecendo à risca à sua sina. 

Esse cenário absurdo, falsamente ornado com cores atrativas, de fato existe e a cada dia conquista para si novos e mais apaixonados adeptos. Mas nem sempre foi assim. 

A ideia de que o amor não deve ser computado entre os principais valores humanos, além de falsa, é uma superstição tipicamente contemporânea. O testemunho legado por nossos antepassados nos relata exatamente o contrário. A procura do amor verdadeiro é tão antiga quanto a própria experiência humana. Homero relata que foi por sua razão que Grécia e Troia arderam e, desde o poeta grego, a história da cultura ocidental confirma, com uma evidência prodigiosa, a sua existência. Ela está relatada nos diálogos de Platão, nas obras de Petrarca, Shakespeare, Dante e Cervantes, nos sonetos de Camões, nos versos de Neruda e Vinícius, na “La traviata” de Verdi e nos quadros de Rembrandt e Gustav Klimt, percorrendo todas as formas da inteligência e da sensibilidade humanas, e irradiando uma chama que, devido à escuridão de nosso tempo, poucos são capazes de compreender e enxergar. 

Nas mais diversas épocas, essa chama materializou-se em muitas obras, cuja existência ainda hoje nos nutre e nos fornece, longe da dúbia luz dos holofotes contemporâneos, uma imagem mais precisa e clara do assunto sobre o qual estamos tratando. Há muitos exemplos que poderiam ser elencados, mas me deterei em um que creio ser, talvez, o mais louvável. Trata-se de “Alceste”, a famosa peça grega, encenada pela primeira vez em 438 a. C..

Ao lado de “Electra”, “Medeia” e “Hipólito”, “Alceste” é uma das mais célebres obras de Eurípedes e encerra um dos testemunhos mais genuínos e grandiosos que nos foram legados pela Hélade. Poucas obras posteriores são tão profundas e sinceras, poucas retratam o perfil de um amor que, eivado da mais plena devoção, serviu de lição a Racine e a Shakespeare e ainda hoje aquece e incendeia nossa alma e nossa sensibilidade. Seu enredo pode ser resumido de forma simples: Alceste, bela e sábia rainha, esposa de Admeto, rei de Féres, apresenta-se à morte no lugar do marido, o qual teve a vida poupada por um acordo entre o deus Apolo e as Parcas, divindades que decidiam sobre a vida e a morte. Lançada a esse ato de heroísmo, a bela rainha parte para o mundo dos mortos, deixando para trás filhos e esposo, cujo luto macula todo o palácio. É depois resgatada por Hércules, que, ao saber da trágica história, não hesita em fazê-la retornar à vida, em uma das cenas mais comoventes da história da literatura ocidental. 

A tragédia de Alceste vai muito além de uma simples história de amor e de um ato de heroísmo. Os séculos posteriores estão repletos de casos amorosos verdadeiramente tocantes. Dante atravessou os infernos à procura de Beatriz, Cervantes, à guisa de amada no mundo real, forjou em seus sonhos a companheira perfeita. E até mesmo Raskólnikov, o miserável e controverso assassino de “Crime e castigo”, de Dostoiévski, encontrou em Sônia sua tão procurada redenção. Todos esses casos são legítimos e devem ser louvados. Mas nenhum deles nos oferece o mesmo grau de abnegação, devoção, amor e entrega que nos é proporcionado pela personagem de Eurípedes. Há uma diferença absurda entre encontrar um amor na vida e, em nome desse amor, abrir mão da própria existência, com a mesma segurança e alegria de quem é convidado a receber um cesto com rosas.

Alceste não hesita um só segundo em sacrificar-se pelo seu esposo. Nutre-lhe, talvez, a certeza da frase do deus Apolo: “Afligem-me, com efeito, as infelicidades daqueles a quem amo”. Não há em sua ação nenhum ato premeditado, não encontramos em seus gestos nenhuma afetação. Despede-se de seus filhos e marido com uma altivez e nobreza que nos lembram os passos de Sócrates rumo à morte, quando, acusado e condenado, o nobre filho da parteira é levado a tomar cicuta. Alceste deixa transparecer uma enorme sinceridade e confiança em suas palavras a Admeto:

Amando-te sinceramente, e dando minha vida para que continues a ver a luz, morrerei por ti quando poderia viver por longo tempo ainda, receber por esposo aquele, dos tessálios, que eu preferisse, e habitar um palácio real. Mas recusei-me a viver privada de tua companhia, e a ver meus filhos sem pai; não me poupei, dispondo embora dos dons da mocidade e dos meios de os usufruir.

Sua nobreza não passará despercebida nem pelo esposo, nem pelos servos. Sua fama e glória serão cantadas pelos poetas, será ela um modelo aos deuses e seu nome haverá de ecoar por todos os cantos da Grécia. É assim que vaticina o Coro: 

Hão-de te celebrar os aedos por seus cantares, ao som do heptacórdio, e por vibrantes hinos não acompanhados pela lira, em Esparta, quando a ronda do tempo trouxer a lua cheia do mês Caineano, e na fértil e opulenta Atenas; porque tua morte dará copiosa e comovente matéria ao estro dos poetas.

Alceste, entanto, não buscava a fama. Agiu apenas por amor. É em seu nome que ela se deixa levar rumo à pátria de Plutão. Em suas palavras, podemos ver o quanto há de sinceridade em suas ações. Não teceu ela nenhum discurso sobre o sacrifício do amor, não compilou elogios a si mesma nem tampouco jactou-se de seu próprio heroísmo. Suas ações são silenciosas, seus atos são comedidos, sua dor permanece oculta, sua entrega é total. O que quer que tenha sentido, guardou para si mesma e, amando, abraçou a morte como se não estivesse praticando nenhum sacrifício. Alceste é um símbolo: é uma prova inegável de que o amor é uma entrega profunda e solitária, que dá-se por satisfeito ao encontrar um riso na face de quem por ele é amado. E Admeto era consciente de tal coisa. Poupado por Apolo, encontrou na entrega da esposa uma outra forma de morte. Seu lamento à mulher é comovente: 

Tu, sim! tu me salvaste, oferecendo o que tens de mais caro, - a vida! - para poupar a minha! E não devo eu chorar a perda de uma esposa como tu? Doravante não quero mais banquete, nem festas animadas pela presença de amigos, nem coroas floridas, nem os cantos de alegria que guarneciam meu palácio. Nunca mais tocarão meus dedos as cordas da lira, nem minha voz se ouvirá ao som da flauta líbia; tu levarás contigo todo o encanto de minha vida. Mas tua imagem, que farei reproduzir por um artista, há de permanecer em minha câmara nupcial; e eu estarei a seus pés, eu a abraçarei, invocando teu nome, na ilusão de abraçar ainda minha querida esposa, embora sabendo que não a verei mais!

A trágica história de Alceste parece pouco crível ao nosso tempo, cujo culto do ego e o narcisismo reduzem a existência humana a uma mera relação entre fantoches, entre objetos que, se aptos ao prazer, são consumidos em um instante e em seguida descartados, privados de sua própria identidade, esgotados tão intensa e rapidamente quanto a chama de um fósforo. Entanto, essa bela peça é a encarnação do próprio destino do amor. Só nos reconhecemos e completamos quando, conscientes de nossa própria identidade, somos capazes de nos comunicar com os outros. E, no caso do amor, esse outro não é, senão, a face perdida de nós mesmos. Platão sugere isso no “Banquete”, e não se equivoca ao fazê-lo. Porém Alceste vai além disso. Ela nos ensina que a entrega a alguém só é possível quando, já senhores de nós mesmos, atiramo-nos sem medo à procura daquilo que amamos, não temendo nem o fracasso, nem a miséria, nem muito menos a morte. Ela revela-nos que o amor encontra seu fim em si mesmo, e que não há vida possível sem o ser amado. Nesse mergulho profundo, em que corpo e alma estão presentes, nada há que recear. E, assim amando, não há como não obter o triunfo.

Foi por amar demasiadamente que Alceste venceu a morte. Sua devoção sem limites mostrou-nos que o fim não existe quando de fato amamos. Sua história é uma apologia ao amor verdadeiro, a essa espécie de entrega e adoração que, uma vez experimentada, liberta-nos do tempo, do medo e da morte. Receio que nossa época não creia mais nisso; que estejamos excessivamente entretidos em nossos prazeres individuais; que não consigamos mais ver no rosto de quem amamos ou julgamos amar senão a possibilidade de alguns instantes divertidos e prazerosos, que logo serão esquecidos; que o outro seja hoje uma ausência, ainda que próximo, e que não mais consigamos encontrar na face de alguém a nossa própria face refletida, pela qual seríamos capazes de nos sacrificar sem nenhum temor. Tudo isso pode ser verdade, é certo. Mas não algo definitivo. Como assevera o Coro, em sua fala final:    

Os acontecimentos que o céu nos proporciona manifestam-se sob as mais diversas formas; e muita coisa acontece, para além de nossos temores e suposições; muita vez o que se espera, nunca sucede; e o que nos assombra, realiza-se com a ajuda dos deuses. A volta de Alceste é uma prova. 

De fato, o caso da bela esposa de Admeto é uma prova inconteste de que o amor não só existe e deve ser incansavelmente buscado, como também é necessário e parte essencial de nosso ser e não requer de nós, senão, uma profunda sinceridade. “Nada conseguirás daquilo que não deves conseguir”, afirma Tânatos, a morte, ao deus Apolo. Porém o amor é possível, ele vive em nós e faz parte de nossa alma, constituindo, talvez, a forma mais simples de, amando, conhecermo-nos a nós mesmos e ultrapassarmos, tal como Alceste, o tempo e a morte, e assim atingirmos a nossa possível eternidade. 


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