A sentença de Erich Auerbach acerca de Montaigne é pontual: “A base obrigatória do método de Montaigne é a vida própria qualquer”. De fato, apesar dos riscos inerentes a toda e qualquer definição, o célebre filólogo alemão foi capaz de resumir em uma única frase o rico e profundo manancial do célebre pensador francês. Nenhum outro intelectual depois de Santo Agostinho mergulhou tão fundo nas pequenas mazelas de sua personalidade, dissecando com um rigor absoluto esses aparentemente inúteis recantos do espírito. Antes de se tornar uma moda vazia, sobre a qual muitos falastrões ergueram e erguem a sua fama, oferecendo ao público sonâmbulo toscos e pueris fantasmas aos quais dão o título de “Eu” e em função dos quais esperam ser aplaudidos, a profunda investigação sobre a individualidade da alma humana constituía um campo percorrido por poucos. Os sofisticados monólogos socráticos, dos quais muitos romancistas são devotos, como é o caso de Dostoiévski, não deixam de oferecer aos seus leitores um vasto painel das sutilezas da alma humana.
Entanto, Sócrates quer fundar uma filosofia, a mesma filosofia sobre a qual se consolidaria todo o Ocidente. Quando, por exemplo, o vemos no “Górgias” bradar que prefere antes discordar de toda a Grécia a discordar de si mesmo, tal testemunho de fidelidade entre um homem e sua consciência não deve ser considerado a retórica de um embusteiro. E é somente quando o vemos no “Fédon” a tomar a cicuta que de fato compreendemos o que havia de verdade em suas palavras, pois somente um homem extremamente apaixonado por suas convicções pode se dirigir com tamanha segurança ao seu próprio fim. Porém as particularidades do mundo grego estão demasiadamente distantes do que um homem moderno entende por “alma”. Há entre esses dois mundos um abismo intransponível.
Shakespeare foi igualmente profundo e percorreu com desenvoltura os labirintos da psique humana. Mas sua criação eminentemente genial, a famosa história do príncipe dinamarquês, só foi escrita alguns poucos anos após a morte de Montaigne, o que dá ao nobre francês o primeiro lugar entre os analistas do espírito humano depois do santo de Hipona. Mesmo um pensador com a desenvoltura de Descartes só escreverá algo relevante quase meio século depois da morte do autor dos “Ensaios”.
Montaigne reina sozinho nesse vasto e movediço território. E, se não chegou a ser o poeta nacional da França, é certamente um dos que mais disso se aproximam, dividindo essa honraria com autores como François Villon, Pierre de Ronsard e, posteriormente, Victor Hugo. Sua incansável procura das razões que levam o espírito humano a determinados comportamentos, de alguma forma, já aponta o destino de quase toda a literatura e filosofia francesas posteriores: um irrefreável senso de subjetivismo e uma inquietação constante acerca dos mecanismos da psique humana, seja nas sutis máximas de La Rochefoucauld ou nos vultosos textos de Proust.
Sua personalidade é o centro de seu universo, a medida através da qual avalia os homens e o mundo ao seu redor: “Os outros formam o homem, eu relato a seu respeito e represento um em particular, bastante mal formado [sic]; e se tivesse de formá-lo de novo, fá-lo-ia, em verdade, bem diferente do que é. Mas hoje já está feito”. Não há, portanto, como discordar de seu testemunho. Nenhum homem, de fato, possui mais do que sua parca e humana experiência. Os que fogem a isso são santos ou loucos. Montaigne não era uma coisa nem outra. Era, antes, um profundo analista de si mesmo, que descobriu em sua própria experiência a medida para avaliar o mundo. Não há nisso nenhum engodo, por certo. Como lembra Auerbach:
“Todo este afã pela vida dos outros passa pelo filtro da própria experiência. Não devemos nos deixar confundir por algumas manifestações de Montaigne, nas quais, por exemplo, adverte contra o julgamento dos outros segundo a própria pessoa, ou contra ter como impossível aquilo que não puder ser imaginado ou que estiver em contradição com os nossos costumes. [...] Pois Montaigne não poderia dar um outro princípio heurístico para o conhecimento de si mesmo, e há várias passagens na quais descreve o seu método a partir de seu ponto de vista [...]”
Ou, nas próprias palavras de Montaigne aos seus leitores:
[...] só escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos, sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. [...] Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto.
Seu credo está correto: somente permanecerá no tempo quem está fora dele. Se um homem preocupa-se demasiadamente com a posteridade, suas chances a ela pertencer são mínimas. As grandes obras nasceram sempre de um ato individual, motivadas pelas paixões, ânsias e angústias secretas de seu autor. A posteridade tem pouco ou nada ver com isso. Uma grande obra tem os ouvidos surdos para ela. E é exatamente por isso que sua permanência se dá: pois ela carrega consigo a marca única de uma experiência que condensa em si tanto as forças do presente quanto as diáfanas imagens do futuro. Poucos autores pertencem tanto a seu tempo quanto Shakespeare ou Cervantes, e poucos são tão atuais e permanentes quanto eles e suas imortais criações. Esse é, ao que parece, o caso de Montaigne. Olhando para si, descobriu ela a humanidade ao seu redor.
Esse profundo analista foi também um profundo crítico de seu tempo. E é verdadeiramente impossível que um homem mergulhe em sua alma e saia de lá com a mesma confiança em seus semelhantes e no mundo ao redor. A descoberta de si conduz qualquer indivíduo a um caminho sem volta: acossado pelo terror e ao mesmo tempo pelo milagre da vida, esse pobre aventureiro do espírito mantém diante do mundo um olhar cético, por vezes piedoso e compassivo, como alguém que observa os maus comportamentos de uma criança. Montaigne não foge a essa regra. Talvez seu ceticismo não provenha de outro lugar senão desse salto em si mesmo, no qual atingiu aquelas águas calmas e profundas nas quais repousa a essência da condição humana.
Há muitos motivos pelos quais um autor conquista a força e a vitalidade de pertencer a seleta galeria dos clássicos. No caso de Montaigne, toda a sua grandeza reside em ter revelado, não sem certa desfaçatez, é verdade, os intricados caminhos da personalidade humana. Que ele tenha sido algumas vezes cínico, isso em nada acarreta à sua obra algum prejuízo. Mesmo os gênios possuem vícios, e exigir a perfeição de um homem implica necessariamente ignorar a própria condição humana. Para um julgamento intelectual, pouco importa, de resto, as preferências e as qualidades pessoais de um homem. Tais exigências se aplicam ao campo da moral e da ética e, é preciso confessá--lo, nem sempre moral e inteligência andam de mãos dadas.
À parte isso, Montaigne é um clássico. Sua lição à posteridade é digna de toda a veneração que um clássico exige. Seu ceticismo, ainda que discutível, apontou lacunas enormes no próprio entusiasmo de seu tempo. Foi de sua pena que ouvimos pela primeira vez a rigorosa afirmação que o grau de civilidade alcançado pela velha Europa não superava lá em muita coisa as então grosseiras formas de vida e de comportamento dos homens primitivos da recém-descoberta América. Suas considerações sobre os povos do Novo Mundo apontam para um certo idealismo em relação ao homem natural, é verdade, o mesmo idealismo que, pouco mais de um século depois, Rousseau tornaria célebre, influenciando a filosofia e a literatura europeias. Montaigne, entanto, o antecipa. Vejamos:
“Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las”.
É discutível se os homens anteriores à sua época veriam esses povos do Novo Mundo com todo o encantamento e entusiasmo propostos por Montaigne. Em todo caso, sua defesa dos homens do novo continente não deixa de ser válida. Ao contrário: ela aponta para um profundo senso de análise e de consciência que a velha Europa ainda demoraria algum tempo para encontrar. Ao lado disso, há em seus ensaios uma verdadeira filosofia do cotidiano. Montaigne percebeu como poucos sutilezas comportamentais que, alguns séculos depois, se tornariam verdadeiras regras civilizatórias, ainda que seus pressupostos negassem toda a civilização herdada. Não é senão enrubescidos que os leitores contemporâneos leem ensaios como “Das vãs sutilezas” ou “Dos inconvenientes das grandezas”. Assim como impressiona, mesmo aos mais preparados, textos como “Apologia de Raymond Sebond” e “De como filosofar é aprender a morrer”, este último marcado por uma notória influência do pensamento socrático.
A França conheceria, posteriormente, grandes pensadores e artistas que lhe granjeariam todo o prestígio do qual quase sempre usufruiu. Montaigne é, inegavelmente, um dos que mais contribuíram para seu imenso prestígio. Seus ensaios são lições permanentes. Através deles, somos chamados a um intenso e sincero mergulho em nós mesmos, um salto do qual necessitamos para compreender as delicadas e inextricáveis teias que nos unem a nós mesmos e ao mundo ao nosso redor. É um convite à nudez, não de corpo, mas de alma, na qual acabamos por descobrir, tal como afirmou certa vez Henrik Ibsen, que o homem mais forte do mundo é aquele que resiste sozinho.